quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Carreras, dezembro, Natal

Carreras em um de seus vários especiais de Natal
(capa do DVD)


Josep Carreras nasceu num cinco de dezembro, data que eu já me acostumara a celebrar desde pequena por ser o aniversário de minha tia e madrinha Hirma. Acaba, portanto, de completar pleníssimos 62 anos. Em paz com a música e a vida, profundamente envolvido com sua obra humanitária - a luta sem trégua contra a leucemia -, festejado em Barcelona com toda pompa e circunstância por seus 50 anos de Liceu, Carreras é uma espécie de síntese viva de arte, grandeza e dignidade.

Lembro-me do rebuliço que era, todos os anos, a preparação do livro de mensagens que a incansável Sharon Herzog, de saudosa memória, entregava a ele no seu aniversário. Com meses de antecedência, todos os membros de sua lista de correio eletrônico enviavam suas mensagens pelo site
http://www.jcarreras.com. Algum tempo depois vinham as fotos da entrega solene daquela "confirmação de votos" anual. Era o nosso jeito de lhe dizer estamos aqui, estamos contigo.

As canções de Natal sempre estiveram na pauta de Josep Carreras. Um histórico disco com os Meninos Cantores de Viena traz uma das mais delicadas gravações de todos os tempos de Panis Angelicus, de César Franck. E o cd da Misa Criolla, de Ariel Ramirez - para mim, até hoje o mais arrebatador de todos os discos do artista - inclui algumas maravilhas natalinas do grande compositor argentino. Navidad Nuestra e Navidad en Verano são peças inesquecíveis, extremamente criativas e que reafirmam algumas tradições musicais latinas muito importantes para a cultura do nosso continente.

Há também algumas gravações de especiais, como Natal em Viena (com Domingo e Diana Ross) ou A Celebration of Christmas (com Domingo e Natalie Cole), na minha opinião um pouco mais comerciais. Gosto muito, porém, de um disco mais despojado e que talvez não figure na lista dos mais vendidos: Merry Christmas, de 1986. Essa pequena jóia, com o acompanhamento da Orquestra e Coro da Ópera de Viena, tem todos os ingredientes do Natal, com todas as maravilhas da voz de um Josep Carreras em seu auge, mestre das delicadezas e dos pianissimos. Em versões bilíngües e às vezes trilíngües, desfila canções queridas da nossa memória, como Noite Feliz (Grüber-Mohr), Cantique de Noel (Adolphe Adam), Guten Abend, Gute Nacht (Brahms), o Ave Verum de Mozart, a Ave Maria e o Mille Cherubini de Schubert e tantas outras.

Esse Josep Carreras natalino é particularmente verdadeiro, a voz redonda, cheia, de uma sensibilidade à toda prova. E técnica, também, que técnica! A gente agradece por ter esses momentos de beleza eternizados e disponíveis. Destaco particularmente o pequeno medley que inclui Joy to the world (Häendel) e as tradicionais El cant dels ocells (espécie de hino de resistência do povo catalão) e Mary's boy child. Uma que me comove em especial é Adeste Fideles, a cara do Natal. Outras mais populares, como White Christmas (Irving Berlin) e Jingle Bells, ao lado de It's Christmas time this year (Holdridge-Huckaby) e Navidad (A. Parera) fazem desse disco uma deliciosa volta às recordações da infância e às tradições que aprendemos a cultivar, nessa época do ano.

Na voz de Josep Carreras, sempre emocionante, sempre tão especial, o Natal ganha anjos, estrelinhas, flocos de neve, renas, trenós, roscas recheadas e os sabores mais insuspeitos. Mesmo no nosso verão tropical e quase sempre ensolarado. É mais ou menos como a gente se sentir em plena Missa do Galo na Capela Sixtina...

sábado, 22 de novembro de 2008

Stiffelio, 1993

Carreras em Stiffelio - Foto: Divulgação

A ópera Stiffelio é uma peça vetusta, de tons sombrios. Trata do dilema de um homem traído, entre os deveres que lhe impõe a religião, a dor do engano e o amor pela mulher, apesar de tudo.

A remontagem, após mais de 150 anos e uma cuidadosa restauração da partitura original, a partir de uma cópia encontrada no Conservatório de Nápoles, recuperou para o repertório internacional uma importantíssima obra verdiana, imediatamente anterior ao Rigoletto e que já continha vários dos ingredientes que marcaram a maturidade do compositor.


Josep Carreras estreou a novíssima montagem no Covent Garden de Londres, em março de 1993. E foi um sucesso! O contido realismo que imprimiu ao personagem principal, o pastor protestante Stiffelio, deslumbrou platéias e críticos como o experiente Rodney Milnes, da revista Opera. Em suas palavras, "é possível imaginar um Stiffelio com mais luz e sombra, mais nuances que o de José Carreras; mas não se pode duvidar de sua estatura heróica, do seu instintivo domínio de um papel que prenuncia Otello." E ainda: "Este Stiffelio é um grande evento. Movam montanhas para vê-lo."

A gravação original da montagem londrina, com Carreras e Catherine Malfitano nos papéis principais, só me chegou às mãos este ano, baixada no eMule. E desde o início fui tomada, entre o fascínio e uma certa ansiedade, por sua opressão constante, traduzida em orquestrações que estão entre as mais belas da obra verdiana. Milnes observa que justamente a crueza e a proximidade que essa ópera enuncia podem ter sido as razões do seu fracasso em 1850, e que teria levado Verdi e Piave a transformá-la, mais tarde, na ópera em quatro atos Aroldo. Para o crítico, o quarteto de Stiffelio - com a esposa infiel, o marido que acaba de descobrir a sua culpa, o correspondente e o pai exageradamente solícito - expressa emoções ainda mais conflitantes, e "sinceramente é muito mais interessante, musicalmente, do que o tão aclamado quarteto do Rigoletto".


De fato, a ansiedade é uma presença constante durante a ópera; tornamo-nos, sem querer, cúmplices de algo que está para se romper a qualquer momento, embora os sofridos personagens lutem o tempo todo para evitá-lo. Lina, a esposa adúltera, consome-se dia a dia em culpa; enquanto o pai tenta colocar panos quentes para manter as aparências, o compenetrado Stiffelio debate-se entre a própria dor, o ciúme e o senso de justiça.


É impressionante a agonia que a música nos passa; cada mínimo trecho carrega sua tensão e sua beleza. Stiffelio concretiza, orquestralmente, a máxima de que, para sermos felizes, temos de sofrer. E no abençoado cânone da ópera que eleva o sofrimento a um estado de êxtase, nós, pobres mortais, vivemos aquilo como se fôssemos, nós mesmos, os personagens capazes de tanta humanidade e loucura a um só tempo.

Gosto muito da montagem e de todas as interpretações, absolutamente irretocáveis. Carreras não se destaca por ser Carreras, e sim por sua determinação em ir fundo no personagem. Exatamente como ele fez ao revolucionar completamente o Don José da ópera Carmen. O seu Stiffelio tem muito daquele Don José puro, quase criança, que a dor vai desfigurando; porém ao contrário daquele, que se deixou despedaçar, seu Stiffelio luta pelo bom instinto de sua alma, para se sobrepujar aos fatores degradantes e manter os seus ilibados princípios morais. Em grandeza, aproxima-se dos sentimentos elevados presentes na ópera Norma.


Curioso é que Stiffelio foi a primeira ópera que Josep Carreras cantou depois que o conheci. Naquela época acompanhei tudo como podia, num tempo pré-internet e pré-telefones celulares. Como desejei ter estado presente! Londres era, então, um sonho absolutamente distante. Mas adorei saber que Carreras não só triunfou como silenciou algumas vozes da célebre turma do contra, que davam a entender que ele não seria mais capaz de enfrentar uma ópera completa. Sobre esse silêncio se ergueram os aplausos, mais calorosos do que nunca, que acolheram em festa o êxito absoluto do seu desempenho e a intensa verdade do seu canto, da sua técnica e daquela emoção que sempre nos deixa absolutamente sem palavras.

domingo, 26 de outubro de 2008

The most beautiful sound I ever heard...

Leonard Bernstein e o cast lírico de West Side Story:
Tatiana Troyanos, Kiri Te Kanawa e Josep Carreras


- Maria, Maria, Maria...
Maria, say it loud and there's music playing...
Say it soft and it's almost like praying...
Maria... I'll never stop saying, Maria... Maria... Maria, Maria...
Um exigente maestro que não espera menos que a perfeição na execução de sua obra.
- Não, não. Você tem que respirar fundo!... "I'll never stop saying Maria... Maria... e aí respira, entende? Vamos a partir de "Say it loud"...
Um tenor tenso, os olhos ansiosos, um fundo respirar.
- Maria... Maria... Maria, Maria... Maria! Ahhh....
Silêncio.
- Maestro, se não se importar eu gostaria de fazer os próximos compassos sozinho!
- Ora, vamos lá... Por que? Você estava fazendo lindamente!
Rosto contraído, olhar contrafeito. O argumento parecia que ia sair, mas...
- Você não gostaria de fazer isso amanhã? É porque a sessão está encerrada por hoje.
Com essa sentença burocrática, o manager que se encarrega de dispensar a orquestra segundo os ditames do Sindicato dos Músicos.
Partituras jogadas dentro da pasta, rosto vermelho, passos duros pelo corredor afora, portas atravessadas como se ali não estivessem. O maestro enterra a cabeça na partitura.
- Eu não acredito!...
Foi com esta emblemática cena do making-of da gravação da versão lírica de West Side Story que tomei conhecimento da existência de um tenor chamado Josep Carreras.
Escolhido a dedo pelo maestro Leonard Bernstein para, ao lado da soprano Kiri Te Kanawa e da mezzo Tatiana Troyanos, liderar o elenco de sua obra-prima numa versão que veio a ser celebradíssima, Josep Carreras era um jovem cheio de energia, com o temperamento tipicamente espanhol à flor da pele e uma voz perfeita, que esbanjava lirismo e técnica.
Fiquei encantada, em que pese o justificado (e antológico) "ataque" diante das notas que a atitude burocrática e politicamente correta da orquestra lhe roubou, num momento crucial. A voz era um veludo; a presença, enorme; a beleza física, inegável. Na minha visão, um príncipe! Extasiada, acompanhei com a máxima atenção o making-of, exibido pela primeira vez no Brasil pela Rede Bandeirantes, se não me engano em 1989 (mais ou menos um ano depois da gravação). Desde então, a voz Carreras tornou-se uma das minhas alegrias nessa vida.
Aliás, esse meu "momento mágico" está em pauta desde setembro último, quando meu
querido amigo Ricardo Leitner, assumido fã de ópera que tem se deliciado com essas minhas histórias, me presenteou com uma cópia do documentário, importada diretamente de Viena d'Áustria! Nem preciso dizer o quanto adorei.
Leonard Bernstein era mesmo um gênio. Que feliz idéia, transformar o maior de seus sucessos da Broadway numa espécie de ópera de bolso! O Romeu e Julieta do West Side, logicamente, repetiu na lírica o sucesso estrondoso alcançado em sua estréia na Broadway. E a canção "Maria", um verdadeiro hino, jamais foi interpretada por quem quer que seja com tanto sentimento, tanto virtuosismo, tanta alma! De fato, aquele foi o som mais bonito que já tinha ouvido, para ser coerente com a brilhante letra da canção.
Todo o disco, aliás, é um primor de criatividade e beleza. Mas "Maria" por Carreras é insuperável. Com que delicadeza ele vai construindo e pontuando a melodia, até que alce vôo e chegue ao auge, para depois retornar à suavidade inicial! Nessa canção, Josep Carreras abusa da perfeição de sua excelente forma vocal, alternando-se entre os seus inesquecíveis pianíssimos e agudos irretocáveis, nos momentos certos.
"Maria" é uma das canções que incluí no meu aparelho de mp3 - que, usado com parcimônia em função dos possíveis riscos à audição, às vezes pode ser um bom companheiro de viagem. Adoro aquele começo que quase não se ouve, o "sussuro gentil" que marca a introdução e que vai crescendo, alargando-se amorosamente até encher toda a pauta musical, a sala de ensaios, a rua, o quarteirão, o mundo.
A cada vez que a escuto, "Maria" me faz evocar aquele momento: a revelação de um artista num momento de superar limites. Para mim, isso é mesmo a cara do Carreras - alguém que se superaria, e continuaria a se superar, pela vida afora.



sábado, 27 de setembro de 2008

Uma Bohème para lembrar sempre

Carreras e Teresa Stratas na Bohème mais representada
da história, a montagem de Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera

Hoje é 28 de setembro de 2008, e me dou conta que estou há quase dois meses ausente desse espaço tão querido e particular para mim, dedicado a Josep Carreras. Falta de assunto decerto é que não foi: há tanto a contar! Desde que me dispus a abrir o cofre das lembranças por aqui, tenho me espantado sempre com a quantidade de pequenas coisas que foram ficando guardadas, embora sem amarelecer, nos meus arquivos internos... Mas voltemos à carga, pois o bimestre mergulhado em trabalho já é passado, e hoje é o futuro onde a memória se renova sempre.
No dia 19 de setembro assisti, no Rio de Janeiro, à última récita da produção de La Bohème comemorativa do ano Puccini. Foi um projeto Brasil-Itália, com artistas dos dois países, que cumpriu condignamente a sua função. Brilharam no palco os tenores Fernando Portari (Brasil) e Jesus Garcia (EUA), que se revezaram como Rodolfo; as sopranos Rosana Lamosa (Brasil) e Adriana Damato (Itália), como Mimì, além de Gabriella Pacce como Musetta. Os barítonos Rodrigo Esteves e Homero Velho viveram, respectivamente, Marcello e Schaunard, enquanto Colline foi encarnado pelo baixo Luiz Ottavio Farias.
Nada mal, mas... o que fazer, se meu coração projetava, na boca de cena, o filme da inesquecível montagem de Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera, com Josep Carreras e Teresa Stratas nos papéis principais e regência de James Levine?
Tenho até hoje a fita em VHS - e um bom aparelho para reproduzi-la. E como foi difícil conseguir! Mas devo o obséquio a meus amigos Ricardo Pereira e Roberto Kovaks, que foram sensacionais na fase inicial do meu aprendizado operístico. Naquela época eu não tinha sequer um reprodutor de vídeo, de modo que as sessões eram organizadas em casas de amigos. Como curti, ri e chorei com aquela Bohème, feita sob medida para um Josep Carreras no auge de sua forma e ardor, e para a aparente fragilidade da múltipla Teresa Stratas! Zefirelli, um rei da beleza, pensou em cada detalhe com tal preciosismo e cuidado que essa montagem permanece até hoje como a mais querida de todas! Há seis meses atrás, no dia 29 de março, o grande diretor foi homenageado na 347a. apresentação de sua Bohème. A homenagem aconteceu durante o entreato, quando Zefirelli foi cercado pelo carinho de todo o elenco, encabeçado por Angela Ghiorghiu e Ramón Vargas. Prova de que o tempo não apaga o encanto de uma montagem que parece ter vindo sintetizar todas as outras.
A Bohème de Zefirelli estrou no Metropolitan Opera no dia 14 de dezembro de 1981, aclamada por uma onda tonitruante de aplausos, como a testa a crítica publicada no The Christian Science Monitor, disponível nos arquivos do Metropolitan. Bem, eu só vim a ver a fita dez anos depois, mas para mim era como se a história real dos pobres amantes estivesse se desenrolando bem ali, à minha frente. Contou a meu favor o fato de ainda saber pouco sobre a ópera, pois atirei-me a ela com o coração mais aberto, apenas com a leitura de uma sinopse. E vivi todo o encantamento da Bohème mergulhada em felicidade, fui fundo em cada detalhe. Carreras era todo coração, puro e desmedido, a voz linda como nunca. Stratas, perfeita, assim como Renata Scotto no papel de Musetta. Gostei de tudo e transformei-a, dentro de mim, num espaço sagrado de memória, pois todas as Bohèmes que vieram depois foram pontes para voltar a primeira, à mais querida, a que meu coração escolheu - e o mundo também, como confirmam as 347 apresentações recém-comemoradas.
Do alto da minha galeria, no último dia 19, não pude deixar de me imaginar no Metropolitan, naquela noite de dezembro de 1981 - atônita, como todo mundo, diante do assombroso Rodolfo de Carreras, que só viria a conhecer uma década depois. E foi bom, ali de cima e ao som da inefável música de Puccini, sentir saudade do que não vivi.


quarta-feira, 30 de julho de 2008

São Paulo, dezembro de 1993

Josep Carreras - São Paulo, 1993
Foto: Koch Tavares (divulgação)

Josep Carreras entrou mesmo com o pé direito no Brasil: duas apresentações no mesmo ano! Mal dava para acreditar.

Depois do êxtase de Curitiba, ao qual voltarei oportunamente, o final de ano nos trouxe São Paulo. Para mim, praticamente na porta de casa, só uns 400 km... de ônibus, claro. Afinal, Barra Mansa, a minha cidade original, fica no meio do caminho entre o Rio e a capital paulista.

Minha amiga Fátima, que me acompanhara a Curitiba, fez questão de repetir a dose. Já era uma aficionada! Fizemos reservas no Hotel Bristol, na Rua Augusta, um querido porto antigo no centro da cidade. Meu primo César Ribeiro, um galante e ferrenho paulistano, nos brindou com os excelentes ingressos no foyer e a presença da prima Suzana, sua filha e grande companheira desde as minhas primeiras incursões na terra da garoa, ainda no tempo da Jovem Guarda. Ih, mas isso faz tempo...

Chegamos cedo, pois a coletiva de imprensa estava marcada para a tarde. Fátima e eu tratamos de encomendar flores para a soprano Ana Maria Gonzalez, por sinal estreante nos palcos brasileiros, que acompanharia Carreras. Quando chegamos ao hotel, ficamos sabendo que seriam, na verdade, duas coletivas: uma no horário marcado, com a soprano e o maestro Enrique Ricci, e outra com Josep Carreras... à noite!

O inusitado da hora, porém, não nos tirou o bom humor. Na verdade, o vôo do tenor tinha sido alterado, daí a mudança de planos. Chegamos, pois, pontualmente no novo horário e a entrevista aconteceu sem problemas. Ao final, como costumo fazer, acerquei-me de Carreras para cumprimentá-lo e entregar lembranças afetivas: uma camisa do Flamengo, um livro com a história do clube, uma medalhinha de São José, o santo que governou o meu batizado. Sei lá por que, achei que José combinava com José...

Ali no salão da entrevista, no Hotel C'a D'Oro, conhecemos os dois jornalistas que fariam a assessoria de imprensa do concerto, contratados pela produtora Koch Tavares. Ao final do evento, já camaradas, contaram que quase pularam em cima de mim quando me dirigi ao tenor, por medo de qualquer violência. E olha que eu nem dei pelo fato! Só não o fizeram porque viram o tratamento que me dispensou... curiosidades "anti-bomba" de um tempo que apenas parecia ser mais calmo que hoje.

O concerto, no senhorial e discreto Municipal de São Paulo, foi correto e, de certa forma, tenso para Josep Carreras. Acostumada a acompanhar suas reações, senti que em determinados momentos ele não parecia lá muito satisfeito. Cantou, como sempre, com o sentimento à flor da pele, e emocionou. Ana Maria Gonzalez, por sua vez, teve uma grande noite e cativou a platéia.

Terminado o concerto, havia um coquetel fechado, no mesmo andar em que estávamos. O jornalista Juan Larena, que acompanhava Josep Carreras como representante da empresa que o agenciava para a América Latina, já era nosso amigo e nos convidou, mas enfrentou dificuldades com as recepcionistas. Aguardávamos próximo à entrada quando, vindo de um dos corredores laterais, apareceu Carreras, de fraque, estranhamente circundado por uma ciranda de seguranças peso-pesado. Que cena!

Minha impressão inicial se confirmou: estava tenso e muito, muito sério. Foi então que ocorreu o fato, para mim, mais inesperado do mundo. Tão logo me avistou, Josep dirigiu-se a mim como que por um impulso, abraçou-me e beijou-me nas duas faces! Quando nossos rostos se encontraram, ele suava frio. Só soube dizer-lhe, ao pé do ouvido: - Bravo, José. - Gracias, respondeu, enquanto se dirigia ao coquetel e me deixava ali atônita, ainda a tentar entender aquele momento de cumplicidade sincera que não teve precedentes e jamais se repetiu, pelo menos não naquele tom.

As coisas se passaram meio em câmera lenta na alma, de modo que os detalhes me escapam. Lembro de ter visto e ouvido muitos flashes espocarem, enquanto nos abraçávamos. Uma foto que, sem dúvida, eu gostaria de ver. Mas o momento foi tão forte que nem me passou pela cabeça procurá-la...

Até hoje não sei direito o que deu nele. Talvez estivesse mesmo insatisfeito com alguma coisa, e o fato de ver um rosto conhecido pode tê-lo acalmado. São conjeturas baseadas em depoimentos que deu em seu livro: segundo ele, após um espetáculo a mente não pára de funcionar e quase sempre não consegue dormir, pois é demasiado crítico em relação a si mesmo.

No coração, porém, ficou a cálida lembrança de um momento em que a humanidade do artista falou mais alto - e fico feliz por ter sido eu a estar ao seu lado naquela hora.

terça-feira, 22 de julho de 2008

O tom da luta

Josep Carreras
Foto: Fundação Carreras

Olhem bem para este sorriso. É o mesmo Carreras de sempre, mas com algo novo; há uma vitalidade, uma segurança, um brilho no olhar que fazem toda a diferença. A foto ilustra o editorial do Boletim de Verão da Fundação Josep Carreras para a Luta contra a Leucemia, que acabo de ler por sugestão da minha amiga Margarida Barros.

Não pude simplesmente lê-lo sem vir aqui falar da força avassaladora dessa luta que Carreras começou há 20 anos, para vencer dia após dia a leucemia. O boletim, admiravelmente concebido em cima das vitórias de cada um - pacientes, médicos, famílias, amigos, sócios, colaboradores, o presidente - é um fascinante registro do dia a dia de quem sabe o valor de querer fazer, de fazer, comemorar... e continuar fazendo o que precisa ser feito.

A luta, aqui, aparece em rostos animados, firmes - mesmo nos das crianças muito pequeninas. É uma luta vigorosa, que lembra o suor e a alegria de trabalhadores que, ao sol, realizam a colheita. Aqui se colhe solidariedade, compaixão no melhor sentido, mãos que sustentam outras mãos, olho no olho e humanidade. As palavras que vão até o fundo do nosso ser e nos desestruturam profundamente são palavras comuns, as mais simples. Como as que saem da boca, por exemplo, de Marta, uma menina de apenas 12 anos que teve leucemia aos seis - e que nos conta sua vida com a empolgação de quem viu um filme maravilhoso, dando à experiência o seu devido valor, mas com a magia do olhar de uma criança que não perdeu, pelo caminho, a capacidade de ser criança. E de sua mãe, Yolanda, que é capaz de olhar o que viveu sob a ótica do futuro que conquistou.

São exemplos de vida que combinam com o sorriso do nosso Carreras ali em cima: estão recheados de uma confiança inabalável, de uma vontade inquebrantável de viver e fazer a vida valer a pena, apesar do sofrimento para chegar até aqui.

A Fundação Carreras é uma célula viva e saudável que produz ânimo, esperança, energia. Vive o hoje e olha corajosamente para o amanhã. As notícias sobre parceiros, arrecadação de fundos, promoção de bolsas de estudo para especialistas, estão ao lado de matérias humanas que revelam um imenso carinho e respeito para com as muitas histórias de vida que a entidade coleciona. Um dos banners, aliás, convida pacientes e ex-pacientes a compartilharem seus planos para o futuro. E Carreras, com a sua dedicação profunda e viva à causa que abraçou com toda a sua intensidade humana, está sempre pronto a encorajar todo mundo com sua convicção, sua certeza e esse sorriso confiante que nos encanta e nos mostra que tudo, afinal, tem valido - e muito - a pena.

O que mais posso dizer senão "Bravo!"?



quarta-feira, 16 de julho de 2008

Buenos Aires, 1991 - O encontro

Hotel Plaza - Buenos Aires
Foto: Sil Spinelli


De volta após quase um mês, provavelmente "narcotizada"
pelas emoções dos 50 anos de Liceu, torno às minhas
pequenas histórias. Serão talvez nove ou dez
horas de uma fria manhã portenha, que
recebe Josep Carreras em meio à
névoa.


No aeroporto de Ezeiza há mais pessoas, talvez umas vinte, todas amigas de Jutta Olsson. Há ali operísticos de todas as idades, mães, filhas adolescentes, radialistas, críticos. Estou ansiosa, temo não saber expressar-me bem em meu cultivado portuñol. No fundo ainda não acredito direito que estou tão perto de ver esse homem, certificar-me que de fato existe, interrogar-lhe os olhos no espaço de igualdade instaurado pela própria condição humana.

Alguém avisa que o vôo chegou. Todos se entreolham e o grupo se aproxima da saída de passageiros, sem atropelos. Lembro-me que era algo como um corredor grande. Após alguns minutos, vejo-o ao longe, ao lado da Sra. Olsson, e num átimo está do meu lado. Em menos tempo ainda, apresento-me respeitosamente e digo a que vim. Na terceira frase sou bruscamente interrompida pela Sra. Olsson que, por algum motivo, não gostou de eu ter tomado a iniciativa. Como boa descendente, sei reconhecer a força do sangue alemão e preferi não interpelar. Carreras disfarçou um meio-sorriso e dirigiu-se à sala de imprensa, onde os jornalistas locais o aguardavam.

Fui punida pela insolência: a Sra. Olsson não me deixou assistir à entrevista. Do lado de fora, aguardei como uma criança inconformada, o rosto colado no vidro, sem entender; não tinha feito nada de errado! Depois de uma eternidade, acabou permitindo minha entrada, já no finalzinho. Ali dentro, porém, após a saída das equipes de reportagem, houve
um momento de estranha calma, quando um Josep Carreras bem relaxado e tranqüilo tomou-me a mão e interessou-se por saber o que fez uma brasileira abalar-se até Buenos Aires só para vê-lo. Em poucos minutos, marcamos uma conversa para o dia seguinte.

Voltei para a casa dos meus anfitriões de carona com Estela Berisso, até hoje uma das mulheres mais elegantes que já conheci - no trato, nas maneiras, no vestir-se. Não podia acreditar na minha sorte, mas ainda estava tensa pela reação - para mim estranha - de minha benfeitora alemã.

Na manhã seguinte telefonei ao Hotel Plaza, onde Josep Carreras estava hospedado, e para minha surpresa transferiram a ligação para ele na hora. Confirmamos, então, o encontro para sete e meia da noite, no hall do hotel.

Desnecessário dizer que fui pontualíssima. O magnífico Hotel Plaza, símbolo de tempos que devem ter sido esplendorosos, reina sozinho como um castelo, em frente a uma linda praça. Identifiquei-me e aguardei. Sim, estava nervosa, assumo, antes que me pergutem. Havia sonhado muito com aquilo...

O maestro Enrique Ricci chegou ao local pouco depois de mim; como ia subir aos aposentos de Carreras, o recepcionista pediu que o avisasse da minha presença. Ricci anuiu, com sua proverbial simpatia e um sorriso acolhedor. Respirei aliviada.

Ao meu lado, no hall, estavam uma repórter e um fotógrafo. Olhamo-nos com simpatia e mútua curiosidade. Mal sabia eu que o meu alívio duraria pouco: eis que chega ao recinto a Sra. Olsson, elegantemente vestida com um conjunto de saia plissada e blusa social em tecido brocado verde-escuro. Mal me olhou, investiu contra mim com uma fúria que não combinava com os modos antigos da arquitetura do lugar:

- O que você está fazendo aqui??, vociferava. - Está sendo inconveniente! Josep tem um compromisso agora e eu vim buscá-lo!

Consegui esclarecer, em meio ao susto, que ele próprio havia marcado comigo, o que em parte aplacou aquela súbita ira. Pôs-se então a reclamar com os dois jornalistas, enquanto eu tecia desesperadamente os meus nervos expostos para abreviar o tempo e dedicava-me à árdua tarefa de me acalmar até que Carreras chegasse.

Passados uns minutos, a jornalista acercou-se de mim, com sua carinha de gente boa. Ficara sabendo (pela Sra. Olsson, claro) que eu tinha intenção de fazer um livro sobre Carreras.

- Será que podemos contar sua história?


A um triz das lágrimas, praticamente implorei para que não mencionasse nada daquilo em sua matéria. Horrorizava-me a idéia de que Josep Carreras, no dia seguinte, abrisse o jornal e me considerasse uma oportunista barata. Por sorte a repórter entendeu perfeitamente o meu desespero. Até hoje sou grata por ela ter colocado sua humanidade acima dos imperativos da profissão.

Por fim, Carreras desceu - e, contra as instâncias de sua anfitriã, atendeu-me com toda distinção e fez questão de me conduzir a um pequeno salão privado, no primeiro andar. Estava tenso, porém. Eu trazia debaixo do braço um pequeno projeto que levara muito tempo criando e que, com a ajuda do pai de minha amiga Cláudia, o talentoso Sr. Mario Benassi de Alba, tinha sido traduzido para o espanhol na noite anterior. Eu me propunha a trabalhar num pequeno livro e num vídeo sobre ele. Aproveitei para ofertar-lhe dois cds brasileiros: o premiado "Passarim", de Tom Jobim, e a trilha sonora incidental de Pantanal, lindíssima (que, com a atual reexibição da novela, tem me emocionado como da primeira vez).

Mesmo dentro de sua apurada educação e extrema cortesia, houve momentos fronteiriços, de uma impaciência que parecia prestes a desatar-se. Mas não; diante das desculpas que, ao pressentir o perigo, apressei-me a oferecer, o belo rosto descontraiu-se e tive oportunidade de lhe explicar em detalhes o que pretendia oferecer, como contribuição, à Fundação Carreras e à causa da leucemia.

Ouviu-me com gravidade e respondeu-me com o cuidado de quem, afinal, não conhece as verdadeiras intenções da pessoa que está à sua frente. Foi o "não" mais elegante que ouvi na vida, mas eu o compreendi naquilo que o meu entusiasmo quase juvenil não previra: ele tinha mesmo de proteger-se.

Despedimo-nos com uma formalidade que, no fundo, sorria. Um sorriso, aliás, que eu reencontraria muitas vezes ao longo daqueles inefáveis dias em terra argentina, quando comecei, ainda que tateando, a conhecer Josep Carreras.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Cantar con el alma, versão “50 anos de Liceu”

Josep Carreras e Lorenzo Bavaj, no concerto de 17 de junho
Foto: divulgação

O tenor está em sua terra, seu palco, sua casa, na noite do mundo, na noite quente de seu país petit. Os olhos que escuto nas ondas de sua voz velha conhecida, límpida e pura como me chega na transmissão do rádio, estão cheios. Imagino como brilham, desdobrados em lembranças. É uma festa particular na alma, ao lado da festa de toda a gente. O pianissimo que todos esperam é mais fundo, talvez. Minha respiração presa, do outro lado do oceano, adivinha-lhe os menores gestos faciais, pequenas peculiaridades como respirar franzindo o nariz e, em seguida, engolir em seco enquanto olha para cima. Sinais de fumaça que, com os anos, aprendemos a reconhecer, e que denunciam seu estado de espírito. Talvez esteja nervoso, mas a distância encurtada me segreda que não, hoje não.

Già il sole dal Gange
Più chiaro sfavilla,
E terge ogni stilla
Dell’alba che piange
.

(Frente a frente, atada por um fio de silêncio ao menor gesto, foi essa a primeira que o vi cantar, numa bela noite de julho, há 17 anos, em Buenos Aires.)

No palco do Liceu de Barcelona ele está sozinho, apesar do piano e seu pianista. Só com sua alegria, com aquele sentir que está presente em cada acorde que modula e solta no ar, um ar que parece sempre admirar-se e envolver-lhe as notas num sopro de doçura. Sim, a doçura está lá, talvez como nunca tenha estado antes, não que eu me lembre. Tem algo de vivo, de uma criança guardada e de repente alforriada com toda aquela típica energia que quer brincar, subir, descer, correr por toda parte, sem parada. Mas o homem e sua voz tomam-na pela mão, ternamente, e toda aquela ânsia de liberdade se acalma, transfigurada em música, na melhor música que a sua tessitura e técnica podem produzir.

Vorrei bacciar i tuoi capelli neri
le labbra tue e gli occhi tuoi severi...

É nesse palco que toda a vida se passa, e ele sabe disso, neste momento tão pactuado e tão ansiado. Estão ali os amados e os amigos, os convidados de honra, os muitos fãs, gente mais próxima ou mais distante. Agora, porém, estão todos juntos numa espécie de abraço, um tipo de prece, a celebração amorosa da música e da paixão.

Lá está Josep Carreras, com seus olhos sábios, sua beleza sóbria, o refinamento que é o seu modo de ser. Um príncipe, a quem por tesouro tocou a música, a mais pura, a mais sentida, a mais apaixonada, a mais delicada e muitas vezes a mais forte. O sentimento, alma e pátria do seu canto, flui em cada instante, em cada respirar das canções. Em cada palavra que redesenha com seu fraseado, famoso pela perfeição irretocável. Nesse palco iluminado, para usar uma expressão que a memória do nosso samba consagrou, e nem por isso menos válida no terreno da lírica. E não pelos holofotes esperados, ou por artes de algum importante iluminador. Mas por essa luz que vem de dentro, de dentro de Josep Carreras, junto com a voz que paralisa o tempo, derrete as princesas de gelo, abraça, murmura... e nina, suave, os melhores sonhos de todos nós.

Si, comm'a nu sciorillo
tu tiene na vucchella
nu poco pocorillo appassuliatella.

Nos braços da voz de Josep Carreras, toda canção sucumbe, misteriosamente encantada. Scarlatti, Tosti, Puccini, Guastavino ou Gardel jamais serão os mesmos depois de hoje, depois desse palco, dessa emoção a um tempo contida e declarada, quando em ouro se transformam todos os acordes e as lembranças, o som de tudo o que por ele foi cantado neste e em outros teatros, óperas, recitais, concertos, canções. E mais uma vez Carreras, só e imenso no centro desse palco que é em si uma vida, oferece-nos, como um poema, a beleza que só a sua arte é capaz de criar neste mundo.

terça-feira, 17 de junho de 2008

Carreras e o Liceu: é hoje o recital dos 50 anos

A Praia de San Sebastiá, em Barcelona: à espera de Josep Carreras
Foto: TV3

Barcelona se prepara para mais uma grande homenagem a Josep Carreras: hoje à noite, a praia (e não a praça) é do povo, que acudirá em peso à retransmissão do recital que o tenor dedica aos 50 anos de uma relação mais que amorosa com o Gran Teatre del Liceu de Barcelona, sua primeira casa operística - e obviamente, por razões sentimentais, uma das mais queridas.

A Praia de San Sebastiá acordou assim: pronta para, daqui a algumas horas, receber o público. O concerto, que começa às 20h, será retransmitido às 21h45 para o telão gigante montado na praia e também pelo canal TV3 da Televisió de Catalunya.


Foram disponibilizadas 2.000 cadeiras na praia; os ingressos, gratuitos, foram retirados pela população a partir do dia 12 e se esgotaram rapidamente. Manifesta-se assim, com em outras vezes, o grande amor que o povo de Barcelona tem por esse filho tão zeloso por sua pátria-mãe.

Foi assim em 1988, quando Josep, tendo vencido a leucemia, organizou um grande concerto para marcar a criação da Fundação Josep Carreras para a Luta contra a Leucemia; e foi assim também no palco do Liceu, na mesma época. Carreras, que julgou poder passar incógnito em uma apresentação da ópera Fedora, com Plácido Domingo e Renata Scotto, foi alçado pelos protagonistas ao palco para, segundo ele próprio, uma das maiores ovações de toda sua vida.

Hoje, aos 61 anos e em pleno exercício de sua arte e de sua obra humanitária, Josep Carreras mais uma vez se rende aos braços de Barcelona. Homenagens, uma grande exposição no hall do Teatro (que vai até 31 de julho e já está sendo disputada por outras casas no mundo todo),o recital, as transmissões pela TV, rádio e internet, cinco programas da Rádio Catalunya Música dedicados a óperas que protagonizou, artigos na imprensa... tudo isso, além de merecido, é comovente porque demonstra cabalmente o apreço e o reconhecimento da sua terra a um dos maiores tenores que o mundo da ópera já conheceu.

Duas rádios transmitem o recital ao vivo, a partir das 20h: www.catalunyamusica.cat e www.catclassica.cat. A partir das 21h45, esses mesmos websites mostrarão as imagens da retransmissão, alternando-se entre o palco do Liceu e a Praia de San Sebastiá.

A entrevista concedida por Josep Carreras, no último domingo, ao programa "Una tarda a l'ópera", da Rádio Catalunia Música, será resumida no intervalo da transmissão radiofônica. Acompanhei, registrei tudo o que me permitiram meus parcos conhecimentos da língua catalã, e prometo apresentá-la aqui, em forma de artigo, depois que se acalmarem as emoções da tarde-noite de hoje (tarde para nós, do hemisfério sul, e noite em Barcelona).


Vale conferir o programa do recital e participar desse momento histórico, com a providencial ajuda da tecnologia. Para os fãs do Brasil e da América Latina, vale lembrar que o fuso horário é de cinco horas a menos. Nesse caso, as transmissões começam às 14h55.

A todos, um bom espetáculo!

Recital Josep Carreras
Piano: Lorenzo Bavaj

Programa

Alessandro Scarlatti
Già il sole dal Gange
O cessate di piagarmi
Pasquale Mario Costa
Era de Maggio
Francesco Paolo Tosti
Segreto
Sogno
O dolce meraviglia!
Giacomo Puccini
Terra e Mare
Menti all'avviso
Eduard Toldrà
Festeig
Cançó del grumet
Carlos Guastavino
La rosa y el sauce
Carlos Gardel
Lejana tierra mía
Salvatore Gambardella
O Marenariello
Nicola Valente
Passione
Gaetano Lama
Silenzio, cantatore
Furio Rendine
Vurria

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Dia 17/6 tem recital também na Internet

Transmissão do concerto merece cartaz - Foto: Liceu

Como boa fã, estou encantada com as comemorações dos 50 anos de Carreras no Liceu de Barcelona.

Na próxima terça-feira, 17 de junho, às 20 horas, acontece o momento maior da festa: um recital especial de Josep Carreras, acompanhado pelo pianista Lorenzo Bavaj, um de seus colaboradores de muitos anos.

A envergadura do evento é tão grande que a organização concebeu uma interessante arquitetura para que todos - estejam onde estiverem - possam paricipar desse momento da carreira do tenor.

No mesmo dia, às 21h45, hora de Barcelona, as forças da tecnologia se unem em torno da emoção: o recital será transmitido para o público num telão gigante instalado na Plaça del Mar, como anuncia o cartaz acima. E com direito a assentos, que podem ser retirados gratuitamente pelos barcelonenses em vários pontos, relacionados na página dedicada ao evento, no site do Teatro Liceu.

Quem preferir assistir em casa receberá as imagens pelo canal TV3, da Televisió de Catalunya. E a TVCi, o canal internacional do grupo, estenderá a tranmissão para vários países.

Além disso, duas rádios na web permitirão que fãs do mundo inteiro, como eu e muitos outros, possam participar. Basta nos conectarmos a http://www.catalunyamusica.cat/ ou http://www.catclassica.cat/. Mas atenção: nas duas emissoras, a transmissão radiofônica começa às 19h55, ou seja, cinco minutos antes do início do concerto no Teatro Liceu.

Não é maravilhoso que a tecnologia, que algumas pessoas reputam fria, possa abrir suas portas à arte e ao sentimento, conectando energias de tantos lugares e transportando-nos, todos, a um grande momento de comunhão como este?

No próximo dia 17, portanto, ajustem os seus fusos horários à hora de Barcelona. E estejamos todos com Josep Carreras.

Recital

Terça-feira, 17 de junho - 21 horas e 45 minutos, hora de Barcelona

Josep Carreras, tenor
Lorenzo Bavaj, piano

Gran Teatre del Liceu de Barcelona
TV3
TVCi
www.catalunyamusica.cat
www.catclassica.cat

sábado, 7 de junho de 2008

50 anos de paixão

Em 1958, aos 11 anos, ele era assim. Na foto com Magda Pruneda, sua professora de música, está vestido com o costume com que debutou no palco do Gran Teatre del Liceu de Barcelona, na ópera "El Retablo de Maese Pedro", de Manuel de Falla.

Em 2008, a sua casa presta a Josep Carreras a mais justa das homenagens: uma exposição que retrata sua trajetória artística nos últimos 50 anos e um concerto no próximo dia 17, que tem tudo para ser dos mais emocionantes, celebram uma vida de arte e beleza, marcada pela dimensão humana do artista e por seu amor por um teatro onde, mesmo antes de cantar, tomou a decisão de dedicar-se à música.

Para dar uma boa medida da importância e da emoção dos eventos que comemoram esse jubileu, este blog publica aqui o comovido artigo do jornalista Pablo Meléndes-Haddad, fã assumido do tenor e orgulhoso curador da mostra. São palavras para não perder.

Carreras: 50 anos de Liceu

Pablo-Meléndez Haddad*

Em 1993, entre uma cerveja e outra em plena Rambla, comentava com um amigo o regresso de Josep Carreras ao Liceu na ópera Fedora, de Umberto Giordano. O interessante é que o grande tenor voltava aos palcos do Teatro Liceu na mesma produção que, em 1988, recebera um Carreras recém-recuperado de uma leucemia que quase lhe custa a vida. Apesar de convalescente, o cantor compareceu ao Liceu como espectador, para assistir Fedora interpretada por Plácido Domingo e Renata Scotto, dois de seus amigos e companheiros de batalha, que o receberam com carinho e o obrigaram a subir ao palco do “seu” Liceu, para reencontrar-se com o público. E não só como o grande cantor que era, mas sobretudo como um ser humano que acabava de vencer a batalha contra o câncer.

Este episódio íntimo marcou não apenas a vida de um homem na plenitude de sua existência e de seu talento; foi emblemático na vida de uma estrela incomensurável do universo artístico internacional, um tenor idolatrado por meio mundo. O mesmo que, em janeiro de 1958, debutava no palco do Liceu como um simples menino cantor, na ópera El Retablo de Maese Pedro, de Manuel de Falla. Sim, faz 50 anos agora. Por isto, o Grande Teatro do Liceu organizou uma grande homenagem em honra desse catalão universal que, no próximo dia 17 de junho, oferecerá um recital aos “liceístas” – e que nesta sexta-feira inaugurará, nos salões do teatro, uma exposição que retrata esse meio século de trajetória artística, e da qual tenho a honra de ser o curador.

Carreras entrou em minha vida quase por casualidade quando, há algumas décadas, me fizeram escutar a então mais recente gravação da ópera Tosca por minha soprano favorita, Monserrat Caballe. O tenor daquela gravação era um jovem e brilhante Josep Carreras. Apesar de os dois já terem atuado juntos em várias gravações, enquanto não escutei o seu Mario Cavaradossi não me conectei àquela voz que era puro veludo - e que com seu canto comovia até as pedras, porque representava o autêntico som da paixão. Depois daquela audição veio o “enamoramento-freaky” típico do aficionado da ópera, ao descobrir o seu impressionante Werther - ao lado de uma deliciosa Frederika von Stade - e os muitos outros personagens plasmados em uma forma de interpretação única, que me marcaram como fã do gênero.

Ao fazer parte desta homenagem a Josep Carreras, terei o privilégio de lhe agradecer as muitas horas de emoções íntimas, de pequenas comoções anímicas, que me converteram na pessoa que hoje sou. A exposição, aberta entre 5 de junho e 31 de julho, retrata parte de uma história que desemboca na Fundação Internacional Josep Carreras para a Luta contra a Leucemia, o último ato desse barcelonense que beijou a glória.


* Pablo Meléndez-Haddad é jornalista e curador da exposição comemorativa dos 50 anos de Josep Carreras no Gran Teatre del Liceu de Barcelona. O artigo foi publicado originalmente no jornal digital ABC.
Meus agradecimentos à Ghislaine, criadora e moderadora do Grupo Josep Carreras no Yahoo, que tem sempre uma notícia fresquinha para nos manter ligados.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Um obrigado bilíngue - A "thank you" in two languages

Josep Carreras em seu trabalho humanitário
Foto: www.jcarreras.com

Quero registrar aqui a minha gratidão a Maria e Ellie Koppelman.
A Maria por traduzir para o inglês os posts deste blog, e a Ellie por enviar a tradução à imensa e fiel lista de correspondência dos fãs de Josep Carreras, atualmente hospedada pelo site www.voceditenore.com, da competente Jean Peccei.

O sonho de transformar este blog em bilíngue ainda não pôde realizar-se por absoluta falta de tempo, e apesar da minha alegria em ver tantas bandeirinhas de vários países entre os visitantes, sempre pensava que seria melhor se todos pudessem ler e compreender os posts.

A iniciativa de Maria e Ellie tornou isso realidade e me fez muito feliz. Essas pessoas maravilhosas se reuniram inicialmente no site www.jcarreras.com, que era cuidado com muito carinho pela incrível Sharon Herzog, uma brava canadense que não só era fã como colaborava muito com as ações filantrópicas da Fundação Carreras. Sharon faleceu em 2004 e deixou saudades, mas as amigas, em sua homenagem, não deixaram a peteca cair. Desde então Ellie Koppelman assumiu a lista e as colaboradoras se mantiveram unidas.

Com esse gesto carinhoso, as duas me incluem no grupo, ainda que indiretamente. Obrigada, meninas! Espero que este blog possa sempre colaborar, dentro do mesmo espírito que as uniu, para difusão da arte, vida e obra de Josep Carreras.

I wish to express here my gratitude to Maria and Ellie Koppelman.
To Maria, for translating this blog's posts to the English language, and to Ellie for spreading the translation to the immense mailing list of Mr. Carreras' loyal fans, presently hosted by the website www.voceditenore.com, run by the efficient Jean Peccei.

The dream of making this blog bilingual has not been possible so far because I haven't had the time to do so; although it is nice to see so many different national flags among the regular visitors, I always thought it would be better if all these people could understand and enjoy the posts.

Thanks to Maria and Ellie, the dream is now come true, and I am very happy about it. These wonderful ladies were reunited at first around the site www.jcarreras.com, run by the amazing Sharon Herzog, a brave Canadian lady who not only was a great fan of Josep Carreras, but who also contributed very much to the works of the Carreras Foundation. Sharon passed away in 2004 and left us very nice memories. But her friends did not leave her legacy to history: as a special tribute, Ellie Koppelman took charge of the mailing list and the site's team remained together.

Their touching attitude brought me in, although somewhat indirectly. Thank you so much, dear ladies! May this blog be able to contribute, under the same spirit that reunited all of you, to the divulgation of Josep Carreras' art, life, and humanitary work.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Margarida, uma luz

Margarida e um amigo transplantado
Foto: Arquivo pessoal

Ela conta que foi como um passe de mágica. Ou seria um instante de extrema consciência, aquilo a que muitos aludem como sendo uma iluminação? No exato momento, no Instituto Nacional do Câncer do Rio, em que um dos seguranças que atendiam Josep Carreras (o meu anjo, como ela o chama até hoje) colocou-a diretamente sob sua proteção e próxima do tenor, Margarida Maria de Finis Barros - ou simplesmente Guida - começou de fato a trabalhar pela causa da leucemia.

Muito atenta e observadora, ela já tinha visto muita coisa. Sabia onde a ajuda era necessária e o que era preciso fazer. A quatro mãos com o marido Luiz Fernando, montou o seu site na Internet, Medula Óssea - Doar em vida salva, em princípio para divulgar informações confiáveis sobre a doença, as possibilidades de tratamento, os locais certos a procurar. Mas o site, acima de tudo, faz campanha e esclarece sobre o processo de doação de medula óssea. O slogan "Doar não dói, salva" tem corrido o Brasil e o mundo, trazendo esperança para muita gente.

Em pouco tempo, o site virou fórum para troca de experiências e ajuda direta. Através de suas páginas chegaram a Margarida muitas pessoas, em maior ou menor grau de desespero, fé, confiança, realistas e fora da realidade, otimistas ou nem tanto, alegres, tristes, corajosas ou muito assustadas. E para todas ela sempre teve uma palavra, uma informação vital, a sugestão de um caminho. Daí para o seu envolvimento com entidades empenhadas no mesmo propósito, foi um pulo. Casas de apoio, instituições, associações, médicos, especialistas, doadores de medula e também de recursos... Hoje Margarida, que acompanhou os primeiros passos do REDOME - Registro de Doadores de Medula Óssea, o órgão brasileiro que canaliza os doadores de medula óssea e oferece gratuitamente os exames necessários, é uma referência no Brasil sobre medula óssea. E tudo por causa de Josep Carreras. Vai-se lá saber que corda interna esse homem tocou dentro dela, com sua voz e sentimento, com sua luta e coragem, com a dedicação incansável ao próximo?

Conheci Margarida justamente em seu "dia de anjo". Já se vão doze anos e continuamos muito amigas. Com seu conhecimento, interesse e percepção, tenho aprendido muito. Sempre que posso, tenho colocado a seu serviço - e, conseqüentemente, a serviço da causa da leucemia - minhas aptidões jornalísticas, meu faro de repórter que nunca dorme e algumas idéias, que para minha felicidade
têm sido úteis em algumas situações. Em todos os nossos encontros no Brasil, Carreras tem dedicado a ela a maior consideração e demonstrado o maior respeito pelo seu trabalho.

Lembro aqui um momento particularmente marcante, em que a nossa parceria deu um resultado humano até então sem precedentes para nós: em 2000, quando os Três Tenores se apresentaram no Estádio do Morumbi, Margarida teve a idéia de pedir à empresa de telefonia Vesper, uma das patrocinadoras do concerto, ingressos para levar treze crianças assistidas por uma instituição de apoio do interior paulista, à qual estava ligada na época. Claro que todas elas já sabiam muito bem quem era Josep Carreras, o que lhe tinha acontecido e a força com que ele superou seus problemas. Já era, portanto, uma inspiração. Mas vê-lo cantar - e talvez conhecê-lo - já estavam na categoria do sonho.

Conseguidas as entradas, desenvolvemos um trabalho a quatro mãos para que as crianças pudessem conhecer Josep Carreras. Quando o tenor vem apresentar-se no Brasil e há algum assunto relevante sobre a leucemia a tratar com ele, tenho o costume de enviar um fax ao hotel, pois sei que um hóspede de sua importância jamais deixa de receber qualquer mensagem enviada em seu nome. E foi o que fiz: expliquei a situação e pedi que recebesse os meninos.

Até a hora de sairmos para o Estádio, de táxi para não perder tempo no trânsito, não havia resposta. No meio do caminho, porém, toca o celular de Margarida: era um representante da agência que promovia o Concerto dos Três Tenores, informando que, quando chegássemos, haveria um representante a postos para nos entregar as credenciais adesivas para acesso ao palco e camarins. Dito e feito: no local combinado, a nossa porta de acesso, lá estava o rapaz. Foi um reconhecimento à antiga, pela descrição das roupas e do tipo físico. Entregou-nos as credenciais e informou que teríamos de estar próximos ao palco, com toda a criançada, assim que terminasse o concerto.

Desnecessário dizer que ficamos tensas quase o tempo todo. Enquanto nossos lugares eram na platéia, ou seja, no gramado, as crianças estavam numa das arquibancadas. Para ajudar, os celulares não funcionavam dentro do estádio! Pensamos rápido e decidimos que, se não fôssemos atrás delas na hora do famoso medley final, simplesmente não conseguiríamos. Deixamos então o estádio às carreiras e saímos à procura da entrada certa para as arquibancadas. Meu Deus, que sufôco! Perguntávamos daqui, dali - e nada. Por sorte sempre há umas boas almas no caminho da gente quando a causa é válida: um dos porteiros nos ajudou a localizar o grupo. Mas isso foi só meio alívio: como atravessar todas as portas que tínhamos acabado de cruzar com aquele bando de gente? Teríamos de dar mil e uma explicações e o tempo era mínimo. O rapaz da agência tinha fornecido o número do celular de um dos seguranças alemães de Carreras, mas era quase impossível ligar com o barulho e, quando finalmente consegui, o sujeito não entendeu nada. Em suma: era preciso agir, e o quanto antes.

Dirigi-me então a um dos seguranças do campo e disse: - Moço, essas crianças aqui têm câncer e têm credenciais para o camarim do Sr. Carreras. Preciso que o Sr. nos autorize a atravessar o gramado com elas até a entrada do camarim, porque nós precisamos chegar lá antes do fim do concerto.

O rapaz me olhou fixamente e pediu três segundos para fazer uma consulta pelo rádio, antes de me responder sim ou não. Confesso que duvidei e pensei, por um momento, que tinha sido um esforço vão. No entanto, em exatos três segundos ele voltou e disse: - Eu mesmo vou conduzir o grupo até os camarins. Milagres da vida!

O medley já ia adiantado, e foi a feliz trilha sonora da nossa caminhada de um extremo a outro do gramado do histórico Morumbi. Nossa amiga Elizabeth, que nos acompanhou ao concerto, apesar de credenciada, não conseguiu passar, sabe-se lá por que. Mas nem por isso ficou triste, pois o mais importante era que as crianças chegassem.

Enquanto aguardávamos, duas meninas menores viram, bem ao nosso lado, a apresentadora Adriane Galisteu, acompanhada do então namorado Rogério Gallo, também aguardando para entrar. - Será que ela tira uma foto com a gente? Consultada, Adriane foi da maior simpatia e carinho com toda a turminha. Está aí um detalhe que nunca vou esquecer, e pelo qual serei eternamente grata. A moça, muitas vezes mal interpretada pela mídia, é simpática e, além disso, é gente de verdade.

Fim de concerto: em alemão, três seguranças sem sorrisos, porém polidos, conferem as ordens, contam os credenciados e nos conduzem, por um corredor comprido, aos camarins modulares. Como nas portas não havia nada escrito, passamos batido pela de Carreras. Sorte que ele mesmo veio ao nosso encontro, todo alegre e simpático como sempre. Falou de futebol com os meninos, apertou muitas mãos, afagou várias cabecinhas. Como brilhavam aqueles treze pares de olhinhos! Lá para as tantas, pasmem, perguntou-me: - Você não vai querer tirar uma foto? E eu nem tinha me tocado!

Logo surgiram algumas máquinas, nenhuma digital, mas as fotos estão aí para a história conferir. Uma delas, que na época enviamos à saudosa Sharon Herzog, falecida em 2004 e que por muitos anos nos agraciou com muitas informações enviadas por email pelo site www.jcarreras.com, ilustra nesse blog o meu post "Ser fã". Logo atrás de mim está Margarida, ainda de cabelos compridos e muito compenetrada.

Acompanhavam Carreras naquela viagem o irmão Alberto e sua esposa, que estavam no camarim e vieram participar daquele momento, a princípio reservados, mas logo em seguida totalmente conquistados pelas crianças e visivelmente emocionados.

Mais que felizes, Margarida e eu sentimo-nos recompensadas. Em silenciosa cumplicidade, repartimos com Josep Carreras o pão do espírito, o único alimento que nunca acaba.

No final de março, em meu retorno do concerto de Curitiba - para o qual, graças à insensibilidade dos prepostos do grupo organizador, Margarida não foi convidada -, passei um dia com ela em São Paulo. Olhávamos justamente aquelas fotos e Margarida me dizia que, do esfuziante grupo de treze, apenas uma ainda resiste. Triste, sim, mas naquele momento, naquele Morumbi mágico, todos foram muito felizes porque puderam privar com alguém que personificava o estímulo para lutarem pela vida. É por essas e outras que Josep Carreras, o ser humano em pleno exercício da sua segunda vida, está e estará para sempre no meu coração. E também no de Margarida, sem dúvida alguma.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

No Instituto Nacional do Câncer (Rio, 1996)



Carreras cantou no Rio de Janeiro em março de 1996, e um tanto ou quanto fora do que seria, a meu ver, o seu habitat natural, o Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Apresentou-se no antigo Metropolitan, na Barra - que depois virou Claro Hall e hoje nem sei mais como se chama, ao lado da soprano Ana Maria Gonzalez e sob a regência do maestro David Gimenez, seu sobrinho. A proposta era comemorar o aniversário da cidade.

A coletiva, dois dias antes, aconteceu no Morro do Pão de Açúcar - e com presença de... Romário! A essa altura o craque já não estava mais no Barcelona, mas Carreras - um confesso apaixonado por futebol e fã de Romário a ponto de contratá-lo para o seu time do coração - fez questão de convidá-lo.

O momento mais tocante, porém, foi a visita ao Instituto Nacional do Câncer, o emblemático INCA, um hospital público que, apesar de todas as dificuldades que sempre enfrentou, trata todos os pacientes de modo igual e realiza milagres no tratamento do câncer no Brasil.

O pequeno grupo de convidados aguardava numa sala de espera, no andar térreo, onde algumas crianças, pacientes de leucemia, esperavam o momento de saudar Carreras. Senti-me apequenar no modesto sofá, enquanto observava o extremo carinho com que enfermeiras e atendentes tratavam todas elas, a conversa animada e orgulhosa de algumas mães, sorrindo, resistindo bravamente em meio a tanta luta e tristeza. E pensei em como há seres humanos verdadeiramente grandes no mundo, como aquelas crianças, suas famílias e o pessoal do hospital. Ali conheci Margarida, grande amiga e quase irmã, o melhor exemplo que conheço de entrega, mobilização e compromisso com a causa da leucemia, por obra e graça do exemplo de Josep Carreras.

No único lance lamentável, o então secretário de Carreras, um senhor alemão que não fazia a menor questão de ser educado com ninguém, começou a gritar descontroladamente com uma das responsáveis pelo serviço. E ela, com toda a tranqüilidade e educação, deixou claro que, no que dizia respeito ao espaço e à segurança dos doentes, quem mandava mesmo era a equipe do hospital.

Mas isso foi antes de Josep Carreras chegar, vindo de uma visita aos doentes acamados, num dos andares superiores. Aí instaurou-se uma aura muito diferente, que tinha a ver com paz, com compromisso, valores, fé, certezas. E amor para compartilhar com quem mais precisa.

Um silêncio profundo e respeitoso tomou espaço durante a homenagem. E Carreras emocionou-se muito. Nem mesmo tentou esconder; só vez em quando retesava a garganta, num gesto muito seu, quem sabe para segurar forças ainda maiores, lembranças talvez. Olhei-o longamente e não pude deixar de sentir orgulho por poder estar ali, naquele momento, e testemunhar comovida a sua dedicação e entrega.

Passada a essência, repórteres brotavam de toda parte. Os três seguranças alemães que acompanhavam o tenor, solenes e profissionais, entraram em ação para garantir um espaço mínimo para que ele pudesse atender a todos. Um deles, gentilmente, conduziu Margarida - que é pequena e estava para ser engolida pelas equipes de tv - para mais perto de Carreras, que esboçou o seu velho conhecido meio-sorriso de cumplicidade.

Saímos dali com a alma lavada, para saborear no jantar as expectativas do concerto que ainda estava por vir.

E foi um lindo concerto, isso sim! Eu e Carmen tínhamos os melhores lugares do mundo: fila A, poltronas 1 e 2. O autêntico gargarejo! Mal podíamos acreditar na sorte. De acordo com a disposição das cadeiras, estávamos as duas literalmente à frente do microfone de Carreras. E Margarida logo atrás, na fila AA (talvez o único episódio da história em que a Fila B era, na verdade, a terceira!).

Tratamos, pois, de aproveitar a noite, a força do momento e a inigualável companhia da voz e do brilho de Josep Carreras, ao vivo e a cores. Isoladas como estávamos numa espécie de pódio particular, não percebíamos o resto à nossa volta; viajávamos soltas pela música e, naquele clima, podíamos até imaginar que o concerto fosse, afinal, só para a gente...

domingo, 11 de maio de 2008

Enrique Ricci

Enrique Ricci - Foto: Divulgação

Josep Carreras sempre soube muito bem o quanto é importante, para a carreira de um tenor, a colaboração com grandes maestros. A convite de Herbert Von Karajan e Leonard Bernstein, por exemplo, deu saltos importantes em sua trajetória operística, dos quais há registros extraordinários.
Em seus inúmeros concertos, seja ao piano ou com orquestra, tem sabido escolher colaboradores de extrema qualidade e confiança, com os quais tem uma troca profunda e harmoniosa, visível mesmo.
Dentre esses quero destacar, em especial, o maestro Enrique Ricci.
Sob sua regência, tive o prazer de assistir a seis concertos de Josep Carreras; dois em Buenos Aires em 1991, dois no Brasil em 1993 (Curitiba e São Paulo), uma memorável apresentação no Hipódromo de San Isidro, em Buenos Aires, em 1994 - e mais um agora, em Curitiba, no dia 29 de março. E devo dizer que o maestro é uma dessas pessoas que tem o dom da claridade em tudo o que faz.
Na relação com os músicos, percebe-se logo um traço de verdadeira humildade, em meio à simpatia e o jeito acolhedor de ser. Talvez por isso o trabalho flua tão agradavelmente, aos olhos e aos ouvidos de quem assiste, por exemplo, a um ensaio. Em momento algum se escuta um grito ou se vê a mínima atitude desrespeitosa: profissional, preciso e exigente como é natural, Enrique Ricci trata a todos com a máxima cortesia e amabilidade. Não há nada, sequer de longe, parecido com aqueles relatos tenebrosos que ouvimos sobre certas estrelas internacionalmente celebradas, que parecem incorporar o mau-humor e o temperamento difícil ao seu currículo.
Há claridade, também, no ato de reger. Seja qual fôr o tempo da obra, seja qual for a energia que cada andamento pede, há uma estranha luz a abrir os sons, uma verdade intrínseca que ele comunica à orquestra, com seu entusiasmo e conhecimento. Lembro-me que, há quinze anos, em Curitiba mesmo, uma OSB encantada revelava o seu prazer em tocar sob sua batuta, acostumava que estava aos muitos coices coroados recebidos pelo caminho.
Enrique Ricci é um homem de modos antigos, encantadores. Faz tudo com método e um enorme sorriso. Paciente ao extremo, conhece logo as pessoas, fruto de seu talento para observar. E aquelas de quem gosta são imediatamente alçadas a uma espécie de círculo protetor, na sua maneira calorosa e abrangente de demonstrar afeto.
Fico encantada em ver como ele trabalha com os cantores. Com Josep Carreras a relação de confiança é tanta que, com uma simples troca de olhar, ambos sabem o que cada um espera do outro. Ao longo dos vários anos que os tenho visto juntos, é um prazer ter a oportunidade de testemunhar esses momentos de verdadeira arte, profissionalismo e respeito entre regente e intérprete.
Em nossa longa história de amigos, houve um tempo em que me mandava cartões postais de todas as partes do mundo. Com que alegria eu recebia aquelas simpáticas manifestações de amizade! Um cartão postal é uma coisa antiga que adoro. Por pequeno que pareça o gesto, é grande em simbolismo: aquela pessoa esteve num bonito lugar, lembrou da gente e fez questão de deixar isso claro.
Aprendo sempre com ele, observando sua maneira de trabalhar, suas convicções pessoais e valores - que, após anos e anos, permanecem os mesmos. Assim como o seu inesgotável entusiasmo para com a vida, sua prodigiosa memória e o carinho sempre farto para com os amigos do coração. Enrique Ricci não é somente um grande artista, mas uma grande pessoa. Com certeza é por isso que Josep Carreras lhe tem tanto carinho e respeito, sentimentos que se refletem no seu desempenho juntos.
Nosso reencontro recente trouxe-me aquela alegria silenciosa e intensa de saber que o tempo não altera a verdadeira cumplicidade que temos com determinadas pessoas; seja qual for o intervalo, a cada vez é como se fosse sempre.

sábado, 3 de maio de 2008

Jornada rumo às Missões

São Miguel das Missões
Foto daqui

Alguém já pegou um ônibus da Pluma para ir do Rio até o Rio Grande do Sul? Mais precisamente, até São Miguel das Missões?

Pois eu já. E afianço que não é missão das mais fáceis. São mais de 24 horas na estrada, com algumas paradas e pouco descanso. As rodovias, vá lá, são boas. As paisagens do sul, agradáveis, com seus campos cultivados e geometrias inovadoras. Mas é muito tempo, é bem longe - e cansa mesmo, ainda que haja uma boa motivação para a viagem.

No final de 1997, embarquei no dito ônibus na rodoviária de Resende, Estado do Rio, por volta de uma da tarde. Josep Carreras faria um concerto histórico em São Miguel, dois dias depois, tendo como cenário as emblemáticas ruínas das Missões. Naquele momento o custo da viagem aérea era inviável para mim, mas perder o concerto, isso sim era impensável. Então vamos lá, força e coragem; encarei o ônibus.

No princípio tudo são flores; dei conta da tarde com galhardia e até algum prazer. Com a noite veio o sono, porque eu tenho o hábito contumaz de confiar nos motoristas e sonhar. Mas o dia seguinte fui dureza; os atrasos sucessivos nas paradas me deixavam nervosa porque não queria perder a entrevista coletiva, que gosto de assistir sempre, para saber das novidades e, se possível, fazer uma ou outra pergunta sobre as atividades da Fundação Carreras.

Confesso que, naquela viagem, minha paciência foi testada inúmeras vezes. A última parada, em Ijuí, foi a gota d'água do meu desespero: a coletiva pipocando e eu presa ali por um tempo enorme, esperando um não-sei-o-quê que o ônibus precisava levar.

Resultado: quando cheguei ao hotel em Santo Ângelo, todo mundo já estava em São Miguel, na coletiva. Atirei as malas no quarto, agarrei um táxi e percorri os para mim muitos quilômetros até o local da entrevista e cenário do concerto. Quase que não me deixam entrar, mas fui salva por um gongo chamado Luciana, a representante da Warner, que dividia o quarto no hotel comigo e Margarida.

É chato para qualquer jornalista chegar atrasado em coletiva. Mas paciência, não teve jeito mesmo. Carreras viu tudo e cumprimentou-me de leve. Procurei um assento obscuro e concentrei-me para assistir. Após uns vinte minutos de papo, senti-me em condições de perguntar sobre a Fundação Carreras... e ouvi um "ohhh" em volta. Coisas de gente atrasada; a pergunta já tinha sido feita! Mas Carreras aproveitou o ensejo e levantou a questão do banco de cordão umbilical, o que amenizou o mico e, para minha informação, foi muito útil.

(No dia seguinte eu teria o desprazer de ver o fato comentado numa coluna do principal jornal da cidade, por sorte sem a identificação da protagonista. Mesmo contrariada, tive de admitir que o colega que escreveu não poderia perder uma chance assim, não é?)

Terminada a entrevista, Carreras e eu conversamos um pouquinho antes da passagem de som. Ao me ver, tirou do bolso o fax que eu lhe enviara, para informar sobre umas pendências envolvendo o Registro de Doadores de Medula Óssea no Brasil. Mais um sinal de sua habitual atenção e cortesia.

Do ensaio fomos "expulsas", mas por sorte havia um bar em frente, com visão total do palco. Ali nos sentamos, eu, Margarida e Carmem, para um empolgante café ao som da voz de Josep Carreras. A noite chegava, não propriamente fria. As estrelas vieram, sem timidez alguma, escutar a música. Foi Margarida quem deu o tom daquele momento singular:

- Não é incrível nós estarmos aqui, com a lua e as estrelas, ouvindo o nosso Carreras cantar nesse lugar tão lindo? E quase que só pra nós?

Sorrimos, concordando, e saboreamos o café, envolvidas pela aragem e pela música. Nossa missão nas Missões apenas começava.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Curitiba, você é assim...


Ópera de Arame - Curitiba, Paraná
Foto: Luis Toporowicz

Curitiba, você é assim,
a certeza de um amor sem fim!
De qualquer parte do mundo,
um abraço, uma canção
- um povo, um só coração!

(Trecho do Hino dos 300 anos de Curitiba)


Passar 12, 13 horas num ônibus, em 1993, era moleza. Hoje não garanto que teria tanto fôlego, mas... o fato é que saí de Barra Mansa às sete e meia da noite de uma quinta-feira, no início de abril, num amarelinho da Itapemirim e feliz da vida. Meu destino era Curitiba, onde aconteceria o primeiro concerto de Josep Carreras no Brasil.
Viajei na véspera da privatização da CSN, onde trabalhava, deixando para trás a ansiedade coletiva que cercava aquele fato histórico e passei a noite na estrada, confabulando com minha própria ansiedade pelo instante de viver, em minha terra, uma alegria pelo menos parecida com a de dois anos antes, em Buenos Aires, quando conheci Carreras.
Assim que soube da notícia de que ele viria ao Brasil para protagonizar aquele que seria o histórico Concerto de Curitiba, quis saber de quem tinha sido a idéia. E descobri que tudo aconteceria por obra e graça do prefeito da cidade, Rafael Greca, um assumido fã de Josep Carreras. Taí alguém que já admiro sem conhecer, pensei. Por gostar do Carreras e pela coragem de trazê-lo!
Logo escrevi para ele, com meu entusiasmo e minha pequena história de devoção. Pois não é que o prefeito respondeu e me credenciou como jornalista para cobrir o evento? Radiante, fiz as malas e os melhores planos, junto com minha amiga Fátima, que seguiria do Rio e me encontraria em Curitiba.
Hospedamo-nos no Araucária Flat, um apart novinho onde ficariam também Josep Carreras e toda a comitiva do evento. Urgia não perder nenhum detalhe...
Ao chegar, às seis da manhã, mais surpresas da prefeitura me aguardavam: havia uma reserva em meu nome no hotel destinado aos jornalistas, que gentimente declinei, além de transporte para a entrevista coletiva, que aconteceria pouco depois na Ópera de Arame, bem ao lado do palco da festa, a magnífica Pedreira Paulo Leminski. No ônibus dos jornalistas pude constatar o peso das feras que teria ao meu lado naqueles memoráveis dias: Zuenir e Mary Ventura, Mary Galanternik, o grande crítico de música Luiz Paulo Horta, José Carlos Barbosa e uns tantos mais, todos muito agradáveis desde o primeiro momento.
Na Ópera de Arame, sobre um tablado, cadeiras bem posicionadas para que os jornalistas tivessem uma boa visão da mesa dos entrevistados. O tempo um pouco cinzento, mas nada frio. Acomodo-me na segunda ou terceira fila. Logo a seguir chegam Josep Carreras, o maestro Enrique Ricci e os organizadores do evento: Miriam Dauelsberg, pela Dell'Arte, e a Secretária de Cultura, Scylla Schulman, além do Prefeito Rafael Greca e sua esposa, uma autêntica catalã.
Quando estava prestes a sentar-se, Carreras me viu e cumprimentou-me. Ao retribuir a distinção, quase paguei o maior mico da história do Concerto de Curitiba: pelos desígnios imprevisíveis da Lei de Murphy, o pé direito traseiro da minha cadeira de ferro entrou inteiro num buraco do tablado!
Segundos de quase pânico, o desequilíbrio a crescer... e, por sorte, uma idéia rápida e feliz: apoiei a mão direita no chão e, com isso, evitei a queda praticamente certa. Recomposta a cadeira, tudo transcorreu na mais perfeita ordem; participei normalmente da coletiva, fiz minhas perguntas e tudo o mais.
Perto do final do evento, percebi um leve toque em meu ombro esquerdo, e uma voz inconfundível quase a segredar-me: - Olha, eu vi o que aconteceu com a sua cadeira. Se não tivesse visto, podia até dizer que foi de emoção porque o homem falou com você!
Era Zuenir Ventura, com seu adorável sorriso brincalhão. Daí em diante foi festa.
Depois descemos todos para visitar os jardins da Ópera de Arame, onde Carreras iria inaugurar uma placa marcando sua passagem - tudo muito bonito e bem organizado, com direito a um simpático brunch. No balcão encontrei o maestro Enrique Ricci, sempre sorridente e afável. Cumprimentamo-nos e observei que havíamos nos cruzado uma vez em Buenos Aires, dois anos antes. - Lembro-me perfeitamente desse dia - respondeu, com segurança e simpatia. - Estávamos no Hotel Plaza e fui eu que a anunciei ao Josep, quando subi - completou. Que memória, pensei com meus botões. A partir daí, e nos dias que se seguiriam, firmamos uma amizade que, ao longo de tantos anos, só tem sido motivo de alegria.
Mais tarde, quando eu e Fátima rumávamos aflitas para o ensaio, demos com duas moças - fãs do Carreras - que estavam a caminho do hotel para nos procurar, por indicação de um conhecido de Fátima. Falamos muito rapidamente, eu cheia de cuidados em não denunciar o nosso destino naquele momento. Mais de um ano depois, uma delas, Carmem, voltaria por outros caminhos e tornar-se-ia uma das minhas melhores amigas, Carreras à parte. Mas isso é outra história...


terça-feira, 22 de abril de 2008

Buenos Aires, 1991 - A chegada

Amanhecer em Buenos Aires
Foto daqui

Mês de julho, um frio horrível mas incapaz de conter as esperanças que transbordavam das minhas malas. Ia ver Carreras! O sonho que crescera tanto dentro de mim, e parecia impossível, ia realizar-se em algumas horas.
Confesso que a ficha relutou muito, até cair. No avião, uma espécie de eletrola mental reproduzia Piazzolla sem parar dentro da minha cabeça, Años de soledad, Sur e todo o repertório do disco feito com Gerry Mulligan. Até eu chegar às ruas da cidade, ao burburinho de uma tarde normal na grande metrópole, eu não entenderia de fato o quanto aquela música tinha cheiro, gosto, tempero mesmo daquela gente.
Tinha contratado um traslado que me deixou exatamente em O'Higgins, 1849, no bairro de Belgrano, onde viviam Clara e Mário. Os queridos pais de Cláudia me receberam como filha, na melhor tradição de quem tem vivência em programas de intercâmbio.
Na mesma tarde, Clara me acompanhou até o centro da cidade, refinado, europeu, movimentadíssimo. Passei na sucursal do Jornal do Brasil, onde fui propor uma matéria sobre os concertos de Carreras (jornalista faz pauta o tempo todo) e depois fui ao encontro da Sra. Jutta Olsson, na Fundação Teatro Colón.
A entrada na Av. Cerrito, atrás do teatro, era simples e requintada. Fiz-me anunciar e fui prontamente recebida.
Jutta Olsson era uma alemã típica, alta, loura, bem vestida e de idade indefinível. Trocamos os cumprimentos de praxe, recebi e paguei os ingressos, conversamos amenidades. Foi então que, distraidamente e do alto da sua experiência, perguntou-me:
- Você não quer ir esperar José no aeroporto, quer?
(Demorei uns segundos para acreditar no que ouvia. Mas foram só uns segundos).
- Claro que sim, responderam meus olhos atônitos e brilhando de felicidade.
- Então esteja na minha casa às cinco da manhã - disse, enquanto anotava o endereço num papel.
O pai de Cláudia, coronel da reserva, cultivado e elegante, fez questão de me levar. Já não lembro o endereço, minha memória galopa neste blog mas não chega a tais minúcias; só sei que era numa praça retangular, bem cuidada. Toquei a campainha e fui admitida no seleto mundo daquela figura ímpar. Móveis antigos, quadros, elegância. Sobre o piano, várias fotos. Detive-me numa delas, um instantâneo com Carreras e algumas outras pessoas, na Europa.
Logo a seguir chegou Facundo, um rapazinho de uns 14 anos talvez, que estudava canto e era uma espécie de discípulo dela, na companhia da elegante Estela Berisso e seu marido, ambos amigos da dona da casa. E lá fomos nós para Ezeiza, acompanhados dos primeiros rasgos da fria e rosada aurora de uma inesquecível manhã de julho, prestes a iluminar um sonho.