sábado, 22 de novembro de 2008

Stiffelio, 1993

Carreras em Stiffelio - Foto: Divulgação

A ópera Stiffelio é uma peça vetusta, de tons sombrios. Trata do dilema de um homem traído, entre os deveres que lhe impõe a religião, a dor do engano e o amor pela mulher, apesar de tudo.

A remontagem, após mais de 150 anos e uma cuidadosa restauração da partitura original, a partir de uma cópia encontrada no Conservatório de Nápoles, recuperou para o repertório internacional uma importantíssima obra verdiana, imediatamente anterior ao Rigoletto e que já continha vários dos ingredientes que marcaram a maturidade do compositor.


Josep Carreras estreou a novíssima montagem no Covent Garden de Londres, em março de 1993. E foi um sucesso! O contido realismo que imprimiu ao personagem principal, o pastor protestante Stiffelio, deslumbrou platéias e críticos como o experiente Rodney Milnes, da revista Opera. Em suas palavras, "é possível imaginar um Stiffelio com mais luz e sombra, mais nuances que o de José Carreras; mas não se pode duvidar de sua estatura heróica, do seu instintivo domínio de um papel que prenuncia Otello." E ainda: "Este Stiffelio é um grande evento. Movam montanhas para vê-lo."

A gravação original da montagem londrina, com Carreras e Catherine Malfitano nos papéis principais, só me chegou às mãos este ano, baixada no eMule. E desde o início fui tomada, entre o fascínio e uma certa ansiedade, por sua opressão constante, traduzida em orquestrações que estão entre as mais belas da obra verdiana. Milnes observa que justamente a crueza e a proximidade que essa ópera enuncia podem ter sido as razões do seu fracasso em 1850, e que teria levado Verdi e Piave a transformá-la, mais tarde, na ópera em quatro atos Aroldo. Para o crítico, o quarteto de Stiffelio - com a esposa infiel, o marido que acaba de descobrir a sua culpa, o correspondente e o pai exageradamente solícito - expressa emoções ainda mais conflitantes, e "sinceramente é muito mais interessante, musicalmente, do que o tão aclamado quarteto do Rigoletto".


De fato, a ansiedade é uma presença constante durante a ópera; tornamo-nos, sem querer, cúmplices de algo que está para se romper a qualquer momento, embora os sofridos personagens lutem o tempo todo para evitá-lo. Lina, a esposa adúltera, consome-se dia a dia em culpa; enquanto o pai tenta colocar panos quentes para manter as aparências, o compenetrado Stiffelio debate-se entre a própria dor, o ciúme e o senso de justiça.


É impressionante a agonia que a música nos passa; cada mínimo trecho carrega sua tensão e sua beleza. Stiffelio concretiza, orquestralmente, a máxima de que, para sermos felizes, temos de sofrer. E no abençoado cânone da ópera que eleva o sofrimento a um estado de êxtase, nós, pobres mortais, vivemos aquilo como se fôssemos, nós mesmos, os personagens capazes de tanta humanidade e loucura a um só tempo.

Gosto muito da montagem e de todas as interpretações, absolutamente irretocáveis. Carreras não se destaca por ser Carreras, e sim por sua determinação em ir fundo no personagem. Exatamente como ele fez ao revolucionar completamente o Don José da ópera Carmen. O seu Stiffelio tem muito daquele Don José puro, quase criança, que a dor vai desfigurando; porém ao contrário daquele, que se deixou despedaçar, seu Stiffelio luta pelo bom instinto de sua alma, para se sobrepujar aos fatores degradantes e manter os seus ilibados princípios morais. Em grandeza, aproxima-se dos sentimentos elevados presentes na ópera Norma.


Curioso é que Stiffelio foi a primeira ópera que Josep Carreras cantou depois que o conheci. Naquela época acompanhei tudo como podia, num tempo pré-internet e pré-telefones celulares. Como desejei ter estado presente! Londres era, então, um sonho absolutamente distante. Mas adorei saber que Carreras não só triunfou como silenciou algumas vozes da célebre turma do contra, que davam a entender que ele não seria mais capaz de enfrentar uma ópera completa. Sobre esse silêncio se ergueram os aplausos, mais calorosos do que nunca, que acolheram em festa o êxito absoluto do seu desempenho e a intensa verdade do seu canto, da sua técnica e daquela emoção que sempre nos deixa absolutamente sem palavras.