quarta-feira, 16 de julho de 2008

Buenos Aires, 1991 - O encontro

Hotel Plaza - Buenos Aires
Foto: Sil Spinelli


De volta após quase um mês, provavelmente "narcotizada"
pelas emoções dos 50 anos de Liceu, torno às minhas
pequenas histórias. Serão talvez nove ou dez
horas de uma fria manhã portenha, que
recebe Josep Carreras em meio à
névoa.


No aeroporto de Ezeiza há mais pessoas, talvez umas vinte, todas amigas de Jutta Olsson. Há ali operísticos de todas as idades, mães, filhas adolescentes, radialistas, críticos. Estou ansiosa, temo não saber expressar-me bem em meu cultivado portuñol. No fundo ainda não acredito direito que estou tão perto de ver esse homem, certificar-me que de fato existe, interrogar-lhe os olhos no espaço de igualdade instaurado pela própria condição humana.

Alguém avisa que o vôo chegou. Todos se entreolham e o grupo se aproxima da saída de passageiros, sem atropelos. Lembro-me que era algo como um corredor grande. Após alguns minutos, vejo-o ao longe, ao lado da Sra. Olsson, e num átimo está do meu lado. Em menos tempo ainda, apresento-me respeitosamente e digo a que vim. Na terceira frase sou bruscamente interrompida pela Sra. Olsson que, por algum motivo, não gostou de eu ter tomado a iniciativa. Como boa descendente, sei reconhecer a força do sangue alemão e preferi não interpelar. Carreras disfarçou um meio-sorriso e dirigiu-se à sala de imprensa, onde os jornalistas locais o aguardavam.

Fui punida pela insolência: a Sra. Olsson não me deixou assistir à entrevista. Do lado de fora, aguardei como uma criança inconformada, o rosto colado no vidro, sem entender; não tinha feito nada de errado! Depois de uma eternidade, acabou permitindo minha entrada, já no finalzinho. Ali dentro, porém, após a saída das equipes de reportagem, houve
um momento de estranha calma, quando um Josep Carreras bem relaxado e tranqüilo tomou-me a mão e interessou-se por saber o que fez uma brasileira abalar-se até Buenos Aires só para vê-lo. Em poucos minutos, marcamos uma conversa para o dia seguinte.

Voltei para a casa dos meus anfitriões de carona com Estela Berisso, até hoje uma das mulheres mais elegantes que já conheci - no trato, nas maneiras, no vestir-se. Não podia acreditar na minha sorte, mas ainda estava tensa pela reação - para mim estranha - de minha benfeitora alemã.

Na manhã seguinte telefonei ao Hotel Plaza, onde Josep Carreras estava hospedado, e para minha surpresa transferiram a ligação para ele na hora. Confirmamos, então, o encontro para sete e meia da noite, no hall do hotel.

Desnecessário dizer que fui pontualíssima. O magnífico Hotel Plaza, símbolo de tempos que devem ter sido esplendorosos, reina sozinho como um castelo, em frente a uma linda praça. Identifiquei-me e aguardei. Sim, estava nervosa, assumo, antes que me pergutem. Havia sonhado muito com aquilo...

O maestro Enrique Ricci chegou ao local pouco depois de mim; como ia subir aos aposentos de Carreras, o recepcionista pediu que o avisasse da minha presença. Ricci anuiu, com sua proverbial simpatia e um sorriso acolhedor. Respirei aliviada.

Ao meu lado, no hall, estavam uma repórter e um fotógrafo. Olhamo-nos com simpatia e mútua curiosidade. Mal sabia eu que o meu alívio duraria pouco: eis que chega ao recinto a Sra. Olsson, elegantemente vestida com um conjunto de saia plissada e blusa social em tecido brocado verde-escuro. Mal me olhou, investiu contra mim com uma fúria que não combinava com os modos antigos da arquitetura do lugar:

- O que você está fazendo aqui??, vociferava. - Está sendo inconveniente! Josep tem um compromisso agora e eu vim buscá-lo!

Consegui esclarecer, em meio ao susto, que ele próprio havia marcado comigo, o que em parte aplacou aquela súbita ira. Pôs-se então a reclamar com os dois jornalistas, enquanto eu tecia desesperadamente os meus nervos expostos para abreviar o tempo e dedicava-me à árdua tarefa de me acalmar até que Carreras chegasse.

Passados uns minutos, a jornalista acercou-se de mim, com sua carinha de gente boa. Ficara sabendo (pela Sra. Olsson, claro) que eu tinha intenção de fazer um livro sobre Carreras.

- Será que podemos contar sua história?


A um triz das lágrimas, praticamente implorei para que não mencionasse nada daquilo em sua matéria. Horrorizava-me a idéia de que Josep Carreras, no dia seguinte, abrisse o jornal e me considerasse uma oportunista barata. Por sorte a repórter entendeu perfeitamente o meu desespero. Até hoje sou grata por ela ter colocado sua humanidade acima dos imperativos da profissão.

Por fim, Carreras desceu - e, contra as instâncias de sua anfitriã, atendeu-me com toda distinção e fez questão de me conduzir a um pequeno salão privado, no primeiro andar. Estava tenso, porém. Eu trazia debaixo do braço um pequeno projeto que levara muito tempo criando e que, com a ajuda do pai de minha amiga Cláudia, o talentoso Sr. Mario Benassi de Alba, tinha sido traduzido para o espanhol na noite anterior. Eu me propunha a trabalhar num pequeno livro e num vídeo sobre ele. Aproveitei para ofertar-lhe dois cds brasileiros: o premiado "Passarim", de Tom Jobim, e a trilha sonora incidental de Pantanal, lindíssima (que, com a atual reexibição da novela, tem me emocionado como da primeira vez).

Mesmo dentro de sua apurada educação e extrema cortesia, houve momentos fronteiriços, de uma impaciência que parecia prestes a desatar-se. Mas não; diante das desculpas que, ao pressentir o perigo, apressei-me a oferecer, o belo rosto descontraiu-se e tive oportunidade de lhe explicar em detalhes o que pretendia oferecer, como contribuição, à Fundação Carreras e à causa da leucemia.

Ouviu-me com gravidade e respondeu-me com o cuidado de quem, afinal, não conhece as verdadeiras intenções da pessoa que está à sua frente. Foi o "não" mais elegante que ouvi na vida, mas eu o compreendi naquilo que o meu entusiasmo quase juvenil não previra: ele tinha mesmo de proteger-se.

Despedimo-nos com uma formalidade que, no fundo, sorria. Um sorriso, aliás, que eu reencontraria muitas vezes ao longo daqueles inefáveis dias em terra argentina, quando comecei, ainda que tateando, a conhecer Josep Carreras.

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