quarta-feira, 30 de julho de 2008

São Paulo, dezembro de 1993

Josep Carreras - São Paulo, 1993
Foto: Koch Tavares (divulgação)

Josep Carreras entrou mesmo com o pé direito no Brasil: duas apresentações no mesmo ano! Mal dava para acreditar.

Depois do êxtase de Curitiba, ao qual voltarei oportunamente, o final de ano nos trouxe São Paulo. Para mim, praticamente na porta de casa, só uns 400 km... de ônibus, claro. Afinal, Barra Mansa, a minha cidade original, fica no meio do caminho entre o Rio e a capital paulista.

Minha amiga Fátima, que me acompanhara a Curitiba, fez questão de repetir a dose. Já era uma aficionada! Fizemos reservas no Hotel Bristol, na Rua Augusta, um querido porto antigo no centro da cidade. Meu primo César Ribeiro, um galante e ferrenho paulistano, nos brindou com os excelentes ingressos no foyer e a presença da prima Suzana, sua filha e grande companheira desde as minhas primeiras incursões na terra da garoa, ainda no tempo da Jovem Guarda. Ih, mas isso faz tempo...

Chegamos cedo, pois a coletiva de imprensa estava marcada para a tarde. Fátima e eu tratamos de encomendar flores para a soprano Ana Maria Gonzalez, por sinal estreante nos palcos brasileiros, que acompanharia Carreras. Quando chegamos ao hotel, ficamos sabendo que seriam, na verdade, duas coletivas: uma no horário marcado, com a soprano e o maestro Enrique Ricci, e outra com Josep Carreras... à noite!

O inusitado da hora, porém, não nos tirou o bom humor. Na verdade, o vôo do tenor tinha sido alterado, daí a mudança de planos. Chegamos, pois, pontualmente no novo horário e a entrevista aconteceu sem problemas. Ao final, como costumo fazer, acerquei-me de Carreras para cumprimentá-lo e entregar lembranças afetivas: uma camisa do Flamengo, um livro com a história do clube, uma medalhinha de São José, o santo que governou o meu batizado. Sei lá por que, achei que José combinava com José...

Ali no salão da entrevista, no Hotel C'a D'Oro, conhecemos os dois jornalistas que fariam a assessoria de imprensa do concerto, contratados pela produtora Koch Tavares. Ao final do evento, já camaradas, contaram que quase pularam em cima de mim quando me dirigi ao tenor, por medo de qualquer violência. E olha que eu nem dei pelo fato! Só não o fizeram porque viram o tratamento que me dispensou... curiosidades "anti-bomba" de um tempo que apenas parecia ser mais calmo que hoje.

O concerto, no senhorial e discreto Municipal de São Paulo, foi correto e, de certa forma, tenso para Josep Carreras. Acostumada a acompanhar suas reações, senti que em determinados momentos ele não parecia lá muito satisfeito. Cantou, como sempre, com o sentimento à flor da pele, e emocionou. Ana Maria Gonzalez, por sua vez, teve uma grande noite e cativou a platéia.

Terminado o concerto, havia um coquetel fechado, no mesmo andar em que estávamos. O jornalista Juan Larena, que acompanhava Josep Carreras como representante da empresa que o agenciava para a América Latina, já era nosso amigo e nos convidou, mas enfrentou dificuldades com as recepcionistas. Aguardávamos próximo à entrada quando, vindo de um dos corredores laterais, apareceu Carreras, de fraque, estranhamente circundado por uma ciranda de seguranças peso-pesado. Que cena!

Minha impressão inicial se confirmou: estava tenso e muito, muito sério. Foi então que ocorreu o fato, para mim, mais inesperado do mundo. Tão logo me avistou, Josep dirigiu-se a mim como que por um impulso, abraçou-me e beijou-me nas duas faces! Quando nossos rostos se encontraram, ele suava frio. Só soube dizer-lhe, ao pé do ouvido: - Bravo, José. - Gracias, respondeu, enquanto se dirigia ao coquetel e me deixava ali atônita, ainda a tentar entender aquele momento de cumplicidade sincera que não teve precedentes e jamais se repetiu, pelo menos não naquele tom.

As coisas se passaram meio em câmera lenta na alma, de modo que os detalhes me escapam. Lembro de ter visto e ouvido muitos flashes espocarem, enquanto nos abraçávamos. Uma foto que, sem dúvida, eu gostaria de ver. Mas o momento foi tão forte que nem me passou pela cabeça procurá-la...

Até hoje não sei direito o que deu nele. Talvez estivesse mesmo insatisfeito com alguma coisa, e o fato de ver um rosto conhecido pode tê-lo acalmado. São conjeturas baseadas em depoimentos que deu em seu livro: segundo ele, após um espetáculo a mente não pára de funcionar e quase sempre não consegue dormir, pois é demasiado crítico em relação a si mesmo.

No coração, porém, ficou a cálida lembrança de um momento em que a humanidade do artista falou mais alto - e fico feliz por ter sido eu a estar ao seu lado naquela hora.

terça-feira, 22 de julho de 2008

O tom da luta

Josep Carreras
Foto: Fundação Carreras

Olhem bem para este sorriso. É o mesmo Carreras de sempre, mas com algo novo; há uma vitalidade, uma segurança, um brilho no olhar que fazem toda a diferença. A foto ilustra o editorial do Boletim de Verão da Fundação Josep Carreras para a Luta contra a Leucemia, que acabo de ler por sugestão da minha amiga Margarida Barros.

Não pude simplesmente lê-lo sem vir aqui falar da força avassaladora dessa luta que Carreras começou há 20 anos, para vencer dia após dia a leucemia. O boletim, admiravelmente concebido em cima das vitórias de cada um - pacientes, médicos, famílias, amigos, sócios, colaboradores, o presidente - é um fascinante registro do dia a dia de quem sabe o valor de querer fazer, de fazer, comemorar... e continuar fazendo o que precisa ser feito.

A luta, aqui, aparece em rostos animados, firmes - mesmo nos das crianças muito pequeninas. É uma luta vigorosa, que lembra o suor e a alegria de trabalhadores que, ao sol, realizam a colheita. Aqui se colhe solidariedade, compaixão no melhor sentido, mãos que sustentam outras mãos, olho no olho e humanidade. As palavras que vão até o fundo do nosso ser e nos desestruturam profundamente são palavras comuns, as mais simples. Como as que saem da boca, por exemplo, de Marta, uma menina de apenas 12 anos que teve leucemia aos seis - e que nos conta sua vida com a empolgação de quem viu um filme maravilhoso, dando à experiência o seu devido valor, mas com a magia do olhar de uma criança que não perdeu, pelo caminho, a capacidade de ser criança. E de sua mãe, Yolanda, que é capaz de olhar o que viveu sob a ótica do futuro que conquistou.

São exemplos de vida que combinam com o sorriso do nosso Carreras ali em cima: estão recheados de uma confiança inabalável, de uma vontade inquebrantável de viver e fazer a vida valer a pena, apesar do sofrimento para chegar até aqui.

A Fundação Carreras é uma célula viva e saudável que produz ânimo, esperança, energia. Vive o hoje e olha corajosamente para o amanhã. As notícias sobre parceiros, arrecadação de fundos, promoção de bolsas de estudo para especialistas, estão ao lado de matérias humanas que revelam um imenso carinho e respeito para com as muitas histórias de vida que a entidade coleciona. Um dos banners, aliás, convida pacientes e ex-pacientes a compartilharem seus planos para o futuro. E Carreras, com a sua dedicação profunda e viva à causa que abraçou com toda a sua intensidade humana, está sempre pronto a encorajar todo mundo com sua convicção, sua certeza e esse sorriso confiante que nos encanta e nos mostra que tudo, afinal, tem valido - e muito - a pena.

O que mais posso dizer senão "Bravo!"?



quarta-feira, 16 de julho de 2008

Buenos Aires, 1991 - O encontro

Hotel Plaza - Buenos Aires
Foto: Sil Spinelli


De volta após quase um mês, provavelmente "narcotizada"
pelas emoções dos 50 anos de Liceu, torno às minhas
pequenas histórias. Serão talvez nove ou dez
horas de uma fria manhã portenha, que
recebe Josep Carreras em meio à
névoa.


No aeroporto de Ezeiza há mais pessoas, talvez umas vinte, todas amigas de Jutta Olsson. Há ali operísticos de todas as idades, mães, filhas adolescentes, radialistas, críticos. Estou ansiosa, temo não saber expressar-me bem em meu cultivado portuñol. No fundo ainda não acredito direito que estou tão perto de ver esse homem, certificar-me que de fato existe, interrogar-lhe os olhos no espaço de igualdade instaurado pela própria condição humana.

Alguém avisa que o vôo chegou. Todos se entreolham e o grupo se aproxima da saída de passageiros, sem atropelos. Lembro-me que era algo como um corredor grande. Após alguns minutos, vejo-o ao longe, ao lado da Sra. Olsson, e num átimo está do meu lado. Em menos tempo ainda, apresento-me respeitosamente e digo a que vim. Na terceira frase sou bruscamente interrompida pela Sra. Olsson que, por algum motivo, não gostou de eu ter tomado a iniciativa. Como boa descendente, sei reconhecer a força do sangue alemão e preferi não interpelar. Carreras disfarçou um meio-sorriso e dirigiu-se à sala de imprensa, onde os jornalistas locais o aguardavam.

Fui punida pela insolência: a Sra. Olsson não me deixou assistir à entrevista. Do lado de fora, aguardei como uma criança inconformada, o rosto colado no vidro, sem entender; não tinha feito nada de errado! Depois de uma eternidade, acabou permitindo minha entrada, já no finalzinho. Ali dentro, porém, após a saída das equipes de reportagem, houve
um momento de estranha calma, quando um Josep Carreras bem relaxado e tranqüilo tomou-me a mão e interessou-se por saber o que fez uma brasileira abalar-se até Buenos Aires só para vê-lo. Em poucos minutos, marcamos uma conversa para o dia seguinte.

Voltei para a casa dos meus anfitriões de carona com Estela Berisso, até hoje uma das mulheres mais elegantes que já conheci - no trato, nas maneiras, no vestir-se. Não podia acreditar na minha sorte, mas ainda estava tensa pela reação - para mim estranha - de minha benfeitora alemã.

Na manhã seguinte telefonei ao Hotel Plaza, onde Josep Carreras estava hospedado, e para minha surpresa transferiram a ligação para ele na hora. Confirmamos, então, o encontro para sete e meia da noite, no hall do hotel.

Desnecessário dizer que fui pontualíssima. O magnífico Hotel Plaza, símbolo de tempos que devem ter sido esplendorosos, reina sozinho como um castelo, em frente a uma linda praça. Identifiquei-me e aguardei. Sim, estava nervosa, assumo, antes que me pergutem. Havia sonhado muito com aquilo...

O maestro Enrique Ricci chegou ao local pouco depois de mim; como ia subir aos aposentos de Carreras, o recepcionista pediu que o avisasse da minha presença. Ricci anuiu, com sua proverbial simpatia e um sorriso acolhedor. Respirei aliviada.

Ao meu lado, no hall, estavam uma repórter e um fotógrafo. Olhamo-nos com simpatia e mútua curiosidade. Mal sabia eu que o meu alívio duraria pouco: eis que chega ao recinto a Sra. Olsson, elegantemente vestida com um conjunto de saia plissada e blusa social em tecido brocado verde-escuro. Mal me olhou, investiu contra mim com uma fúria que não combinava com os modos antigos da arquitetura do lugar:

- O que você está fazendo aqui??, vociferava. - Está sendo inconveniente! Josep tem um compromisso agora e eu vim buscá-lo!

Consegui esclarecer, em meio ao susto, que ele próprio havia marcado comigo, o que em parte aplacou aquela súbita ira. Pôs-se então a reclamar com os dois jornalistas, enquanto eu tecia desesperadamente os meus nervos expostos para abreviar o tempo e dedicava-me à árdua tarefa de me acalmar até que Carreras chegasse.

Passados uns minutos, a jornalista acercou-se de mim, com sua carinha de gente boa. Ficara sabendo (pela Sra. Olsson, claro) que eu tinha intenção de fazer um livro sobre Carreras.

- Será que podemos contar sua história?


A um triz das lágrimas, praticamente implorei para que não mencionasse nada daquilo em sua matéria. Horrorizava-me a idéia de que Josep Carreras, no dia seguinte, abrisse o jornal e me considerasse uma oportunista barata. Por sorte a repórter entendeu perfeitamente o meu desespero. Até hoje sou grata por ela ter colocado sua humanidade acima dos imperativos da profissão.

Por fim, Carreras desceu - e, contra as instâncias de sua anfitriã, atendeu-me com toda distinção e fez questão de me conduzir a um pequeno salão privado, no primeiro andar. Estava tenso, porém. Eu trazia debaixo do braço um pequeno projeto que levara muito tempo criando e que, com a ajuda do pai de minha amiga Cláudia, o talentoso Sr. Mario Benassi de Alba, tinha sido traduzido para o espanhol na noite anterior. Eu me propunha a trabalhar num pequeno livro e num vídeo sobre ele. Aproveitei para ofertar-lhe dois cds brasileiros: o premiado "Passarim", de Tom Jobim, e a trilha sonora incidental de Pantanal, lindíssima (que, com a atual reexibição da novela, tem me emocionado como da primeira vez).

Mesmo dentro de sua apurada educação e extrema cortesia, houve momentos fronteiriços, de uma impaciência que parecia prestes a desatar-se. Mas não; diante das desculpas que, ao pressentir o perigo, apressei-me a oferecer, o belo rosto descontraiu-se e tive oportunidade de lhe explicar em detalhes o que pretendia oferecer, como contribuição, à Fundação Carreras e à causa da leucemia.

Ouviu-me com gravidade e respondeu-me com o cuidado de quem, afinal, não conhece as verdadeiras intenções da pessoa que está à sua frente. Foi o "não" mais elegante que ouvi na vida, mas eu o compreendi naquilo que o meu entusiasmo quase juvenil não previra: ele tinha mesmo de proteger-se.

Despedimo-nos com uma formalidade que, no fundo, sorria. Um sorriso, aliás, que eu reencontraria muitas vezes ao longo daqueles inefáveis dias em terra argentina, quando comecei, ainda que tateando, a conhecer Josep Carreras.