sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Carreras em dose tripla no Brasil

Felicidade para os fãs, admiradores e amigos de Josep Carreras: em setembro e outubro, o tenor fará três concertos no país.
No dia 20 de setembro inaugura o Teatro Feevale, na cidade gaúcha de Novo Hamburgo. Pode-se dizer que inaugurar grandes teatros no sul do Brasil está virando uma tradição, pois Carreras inaugurou, há três anos, o Teatro Positivo em Curitiba, ao qual retornará nesta turnê. O concerto será no dia 27 de setembro.
Depois, mudança de um polo a outro: Carreras é a atração comemorativa dos 10 anos do Chevrolet Hall, casa de espetáculos situada em Recife. O concerto acontece no dia 1 de outubro.
Carreras, com seu charme, carisma e aquela voz comovente e sincera que enche o teatro e a alma de quem o ouve, está cada vez mais presente por aqui. Na mesma turnê, intitulada Mediterranean Passion, cantará também na Argentina, nos dias 24/9 e 5/10. Desta vez virá acompanhado da soprano argentina Marina Silva, muito festejada e premiada.
Por enquanto, nada de Rio de Janeiro... O tenor cantou na Cidade Maravilhosa apenas uma vez, no dia 1 de março de 1996, no antigo Metropolitan, na Barra. Por enquanto, o sonho de ver um concerto seu no nosso amado Theatro Municipal, parece distante.
Quem se anima a uma mobilização para realizá-lo? Ainda mais se for beneficente, voltado para a causa da leucemia, este concerto tem tudo para se tornar mais um marco histórico no templo das artes mais importante do país.


segunda-feira, 31 de maio de 2010

Josep Carreras em São Paulo, Brasil - Maio 2010

Carreras, em São Paulo para dois concertos, alerta sobre a importância de ser doador de medula óssea

sábado, 18 de julho de 2009

Delicadeza que decerto faz falta...

Penso que delicadeza deveria ser um atributo essencial na contratação de qualquer profissional. A fala dela, porém, torna-se gravíssima quando o profissional tem, por ofício, atender ao público, responder pela boa imagem de uma empresa, tratar da comunicação.

Nesse particular, Josep Carreras é imbatível; um verdadeiro príncipe, na verdade - e de berço. Esse traço seu decerto o acompanha há vidas e vidas, e nesta, especificamente, pude testemunhá-lo nas mais diversas ocasiões.

Por isso mesmo, não entendo o fato de a delicadeza não imperar entre algumas pessoas que trabalham para ele e têm a seu cargo zelar por um bem muito precioso: a vida humana.

Minha recente tentativa de visita à Fundação Internacional Josep Carreras para a Luta contra a Leucemia constituiu-se numa tremenda decepção - que aos poucos transformou-se, mesmo, em indignação.

Lembro-me de que, há alguns anos atrás, quando a sede da fundação ainda ficava na Carrer Roger de Lluria, minha amiga Flávia esteve lá, para levar uma lembrança para Josep em meu nome. E foi muitíssimo bem recebida! Até me mandaram o então recém-lançado livro de culinária e ópera de Carreras.

Em maio passado, estive na cidade e, dentro dos cânones do politicamente correto, enviei um email à Comunicação da Fundação, no qual me identificava e solicitava que me recebessem. A visita de cortesia tinha por finalidade atualizar-me quanto às recentes atuações da Fundação, para que, na medida das minhas possibilidades, ajudasse a divulgá-las, coisa que aliás tenho feito a vida toda.

Não tive resposta alguma, mas minha grande amiga Carme Pujol, ela mesma jornalista e catalã, sugeriu que déssemos uma chegada lá. E assim fizemos. À porta, uma jovem senhora nos interpelou em tom cortante: "O que querem?". Procurei explicar educadamente, mas o segundo corte não me esperou concluir: "Não podem vir aqui sem ligar antes, já estamos de saída!" Ponderei que havia feito contato mas não obtive resposta. "Não posso fazer nada. Vou sair agora. Tem que ligar para Alessandra amanhã. Ela não respondeu porque estava viajando." E assim se encerrou o breve colóquio, a senhora com a porta quase na nossa cara e nenhum sorriso. Carme, escandalizada, me pediu desculpas em sentido pátrio. Claro está que aquela simpatia toda não combinava com nada do que até então tinha recebido da Catalunya de Josep; relaxei e, mesmo sem muita vontade, comprometi-me comigo mesma a ligar no dia seguinte.

Mal me identifiquei ao telefone, a indicada Alessandra - ao que parece, responsável pela Comunicação da Fundação - me interpelou apressada. "Sim, minha colega me comentou. O que deseja?" Repeti a mesma intenção: disse que conhecia Josep há muito tempo e que queria visitar a Fundação, para ter mais informações e ajudar a disseminá-las. Sem mudar o tom, disse: "Bem, se quiser, pode vir... mas não venha muito tarde. Pelas quatro horas é melhor. Mas já vou avisando que sou muito ocupada e que não tenho muito tempo."

Convenhamos: se a ocupação de um profissional de Comunicação é atender a imprensa, não vejo em que aspecto o fato de me atender estaria fora de suas atribuições. Se uma pessoa dessas responde pela Comunicação de uma organização que existe para atender à vida humana e para valorizá-la, não pode se comportar como uma funcionária pública ligada no piloto automático e não tem o direito de ser grosseira ou fazer com que o visitante se sinta indesejável. Há coisas que simplesmente não batem.

Após desligar, ponderei se deveria ou não me dar ao trabalho de retornar. Apesar das minhas melhores intenções e de todo o respeito que tenho, sempre tive e terei pela obra de Josep na luta contra a leucemia, cheguei à conclusão que não valia a pena. E, em nome deste mesmo respeito, devo dizer que a organização precisa se reavaliar nesse aspecto do relacionamento com o mundo externo: não há como alguém acreditar efetivamente nela se a voz que fala em seu nome passa essa imagem de arrogância e desinteresse em saber o que aquela pessoa - que nesse caso fui eu, mas poderia ser alguém muito mais importante - teria ou não a acrescentar ou oferecer.

Não pude deixar de me lembrar de um momento na vida em que senti, muito fortemente, a presença da verdadeira humanidade. Foi no Instituto Nacional do Câncer, em 2006, justamente na visita de Josep Carreras. Aliás, até já falei nisso por aqui. Sentada numa sala de espera cheia de pacientes, pude testemunhar o carinho, a dedicação e a educação que todas as enfermeiras, sem exceção, nos dispensavam - a nós e aos pacientes que esperavam para cumprimentar o tenor. Não havia, ali, qualquer pessoa "ocupada demais" para dar atenção a quem precisava ou a quem observava; todas sabiam exatamente qual era o seu papel no mundo e se entregavam totalmente a ele. Algo muito além do salário, do horário de entrada e saída, de qualquer formalidade. E lamentei, sinceramente, que Josep não tenha conseguido isso na sua tão querida Fundação, apesar de todo o seu empenho e exemplo.



quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Carreras, dezembro, Natal

Carreras em um de seus vários especiais de Natal
(capa do DVD)


Josep Carreras nasceu num cinco de dezembro, data que eu já me acostumara a celebrar desde pequena por ser o aniversário de minha tia e madrinha Hirma. Acaba, portanto, de completar pleníssimos 62 anos. Em paz com a música e a vida, profundamente envolvido com sua obra humanitária - a luta sem trégua contra a leucemia -, festejado em Barcelona com toda pompa e circunstância por seus 50 anos de Liceu, Carreras é uma espécie de síntese viva de arte, grandeza e dignidade.

Lembro-me do rebuliço que era, todos os anos, a preparação do livro de mensagens que a incansável Sharon Herzog, de saudosa memória, entregava a ele no seu aniversário. Com meses de antecedência, todos os membros de sua lista de correio eletrônico enviavam suas mensagens pelo site
http://www.jcarreras.com. Algum tempo depois vinham as fotos da entrega solene daquela "confirmação de votos" anual. Era o nosso jeito de lhe dizer estamos aqui, estamos contigo.

As canções de Natal sempre estiveram na pauta de Josep Carreras. Um histórico disco com os Meninos Cantores de Viena traz uma das mais delicadas gravações de todos os tempos de Panis Angelicus, de César Franck. E o cd da Misa Criolla, de Ariel Ramirez - para mim, até hoje o mais arrebatador de todos os discos do artista - inclui algumas maravilhas natalinas do grande compositor argentino. Navidad Nuestra e Navidad en Verano são peças inesquecíveis, extremamente criativas e que reafirmam algumas tradições musicais latinas muito importantes para a cultura do nosso continente.

Há também algumas gravações de especiais, como Natal em Viena (com Domingo e Diana Ross) ou A Celebration of Christmas (com Domingo e Natalie Cole), na minha opinião um pouco mais comerciais. Gosto muito, porém, de um disco mais despojado e que talvez não figure na lista dos mais vendidos: Merry Christmas, de 1986. Essa pequena jóia, com o acompanhamento da Orquestra e Coro da Ópera de Viena, tem todos os ingredientes do Natal, com todas as maravilhas da voz de um Josep Carreras em seu auge, mestre das delicadezas e dos pianissimos. Em versões bilíngües e às vezes trilíngües, desfila canções queridas da nossa memória, como Noite Feliz (Grüber-Mohr), Cantique de Noel (Adolphe Adam), Guten Abend, Gute Nacht (Brahms), o Ave Verum de Mozart, a Ave Maria e o Mille Cherubini de Schubert e tantas outras.

Esse Josep Carreras natalino é particularmente verdadeiro, a voz redonda, cheia, de uma sensibilidade à toda prova. E técnica, também, que técnica! A gente agradece por ter esses momentos de beleza eternizados e disponíveis. Destaco particularmente o pequeno medley que inclui Joy to the world (Häendel) e as tradicionais El cant dels ocells (espécie de hino de resistência do povo catalão) e Mary's boy child. Uma que me comove em especial é Adeste Fideles, a cara do Natal. Outras mais populares, como White Christmas (Irving Berlin) e Jingle Bells, ao lado de It's Christmas time this year (Holdridge-Huckaby) e Navidad (A. Parera) fazem desse disco uma deliciosa volta às recordações da infância e às tradições que aprendemos a cultivar, nessa época do ano.

Na voz de Josep Carreras, sempre emocionante, sempre tão especial, o Natal ganha anjos, estrelinhas, flocos de neve, renas, trenós, roscas recheadas e os sabores mais insuspeitos. Mesmo no nosso verão tropical e quase sempre ensolarado. É mais ou menos como a gente se sentir em plena Missa do Galo na Capela Sixtina...

sábado, 22 de novembro de 2008

Stiffelio, 1993

Carreras em Stiffelio - Foto: Divulgação

A ópera Stiffelio é uma peça vetusta, de tons sombrios. Trata do dilema de um homem traído, entre os deveres que lhe impõe a religião, a dor do engano e o amor pela mulher, apesar de tudo.

A remontagem, após mais de 150 anos e uma cuidadosa restauração da partitura original, a partir de uma cópia encontrada no Conservatório de Nápoles, recuperou para o repertório internacional uma importantíssima obra verdiana, imediatamente anterior ao Rigoletto e que já continha vários dos ingredientes que marcaram a maturidade do compositor.


Josep Carreras estreou a novíssima montagem no Covent Garden de Londres, em março de 1993. E foi um sucesso! O contido realismo que imprimiu ao personagem principal, o pastor protestante Stiffelio, deslumbrou platéias e críticos como o experiente Rodney Milnes, da revista Opera. Em suas palavras, "é possível imaginar um Stiffelio com mais luz e sombra, mais nuances que o de José Carreras; mas não se pode duvidar de sua estatura heróica, do seu instintivo domínio de um papel que prenuncia Otello." E ainda: "Este Stiffelio é um grande evento. Movam montanhas para vê-lo."

A gravação original da montagem londrina, com Carreras e Catherine Malfitano nos papéis principais, só me chegou às mãos este ano, baixada no eMule. E desde o início fui tomada, entre o fascínio e uma certa ansiedade, por sua opressão constante, traduzida em orquestrações que estão entre as mais belas da obra verdiana. Milnes observa que justamente a crueza e a proximidade que essa ópera enuncia podem ter sido as razões do seu fracasso em 1850, e que teria levado Verdi e Piave a transformá-la, mais tarde, na ópera em quatro atos Aroldo. Para o crítico, o quarteto de Stiffelio - com a esposa infiel, o marido que acaba de descobrir a sua culpa, o correspondente e o pai exageradamente solícito - expressa emoções ainda mais conflitantes, e "sinceramente é muito mais interessante, musicalmente, do que o tão aclamado quarteto do Rigoletto".


De fato, a ansiedade é uma presença constante durante a ópera; tornamo-nos, sem querer, cúmplices de algo que está para se romper a qualquer momento, embora os sofridos personagens lutem o tempo todo para evitá-lo. Lina, a esposa adúltera, consome-se dia a dia em culpa; enquanto o pai tenta colocar panos quentes para manter as aparências, o compenetrado Stiffelio debate-se entre a própria dor, o ciúme e o senso de justiça.


É impressionante a agonia que a música nos passa; cada mínimo trecho carrega sua tensão e sua beleza. Stiffelio concretiza, orquestralmente, a máxima de que, para sermos felizes, temos de sofrer. E no abençoado cânone da ópera que eleva o sofrimento a um estado de êxtase, nós, pobres mortais, vivemos aquilo como se fôssemos, nós mesmos, os personagens capazes de tanta humanidade e loucura a um só tempo.

Gosto muito da montagem e de todas as interpretações, absolutamente irretocáveis. Carreras não se destaca por ser Carreras, e sim por sua determinação em ir fundo no personagem. Exatamente como ele fez ao revolucionar completamente o Don José da ópera Carmen. O seu Stiffelio tem muito daquele Don José puro, quase criança, que a dor vai desfigurando; porém ao contrário daquele, que se deixou despedaçar, seu Stiffelio luta pelo bom instinto de sua alma, para se sobrepujar aos fatores degradantes e manter os seus ilibados princípios morais. Em grandeza, aproxima-se dos sentimentos elevados presentes na ópera Norma.


Curioso é que Stiffelio foi a primeira ópera que Josep Carreras cantou depois que o conheci. Naquela época acompanhei tudo como podia, num tempo pré-internet e pré-telefones celulares. Como desejei ter estado presente! Londres era, então, um sonho absolutamente distante. Mas adorei saber que Carreras não só triunfou como silenciou algumas vozes da célebre turma do contra, que davam a entender que ele não seria mais capaz de enfrentar uma ópera completa. Sobre esse silêncio se ergueram os aplausos, mais calorosos do que nunca, que acolheram em festa o êxito absoluto do seu desempenho e a intensa verdade do seu canto, da sua técnica e daquela emoção que sempre nos deixa absolutamente sem palavras.

domingo, 26 de outubro de 2008

The most beautiful sound I ever heard...

Leonard Bernstein e o cast lírico de West Side Story:
Tatiana Troyanos, Kiri Te Kanawa e Josep Carreras


- Maria, Maria, Maria...
Maria, say it loud and there's music playing...
Say it soft and it's almost like praying...
Maria... I'll never stop saying, Maria... Maria... Maria, Maria...
Um exigente maestro que não espera menos que a perfeição na execução de sua obra.
- Não, não. Você tem que respirar fundo!... "I'll never stop saying Maria... Maria... e aí respira, entende? Vamos a partir de "Say it loud"...
Um tenor tenso, os olhos ansiosos, um fundo respirar.
- Maria... Maria... Maria, Maria... Maria! Ahhh....
Silêncio.
- Maestro, se não se importar eu gostaria de fazer os próximos compassos sozinho!
- Ora, vamos lá... Por que? Você estava fazendo lindamente!
Rosto contraído, olhar contrafeito. O argumento parecia que ia sair, mas...
- Você não gostaria de fazer isso amanhã? É porque a sessão está encerrada por hoje.
Com essa sentença burocrática, o manager que se encarrega de dispensar a orquestra segundo os ditames do Sindicato dos Músicos.
Partituras jogadas dentro da pasta, rosto vermelho, passos duros pelo corredor afora, portas atravessadas como se ali não estivessem. O maestro enterra a cabeça na partitura.
- Eu não acredito!...
Foi com esta emblemática cena do making-of da gravação da versão lírica de West Side Story que tomei conhecimento da existência de um tenor chamado Josep Carreras.
Escolhido a dedo pelo maestro Leonard Bernstein para, ao lado da soprano Kiri Te Kanawa e da mezzo Tatiana Troyanos, liderar o elenco de sua obra-prima numa versão que veio a ser celebradíssima, Josep Carreras era um jovem cheio de energia, com o temperamento tipicamente espanhol à flor da pele e uma voz perfeita, que esbanjava lirismo e técnica.
Fiquei encantada, em que pese o justificado (e antológico) "ataque" diante das notas que a atitude burocrática e politicamente correta da orquestra lhe roubou, num momento crucial. A voz era um veludo; a presença, enorme; a beleza física, inegável. Na minha visão, um príncipe! Extasiada, acompanhei com a máxima atenção o making-of, exibido pela primeira vez no Brasil pela Rede Bandeirantes, se não me engano em 1989 (mais ou menos um ano depois da gravação). Desde então, a voz Carreras tornou-se uma das minhas alegrias nessa vida.
Aliás, esse meu "momento mágico" está em pauta desde setembro último, quando meu
querido amigo Ricardo Leitner, assumido fã de ópera que tem se deliciado com essas minhas histórias, me presenteou com uma cópia do documentário, importada diretamente de Viena d'Áustria! Nem preciso dizer o quanto adorei.
Leonard Bernstein era mesmo um gênio. Que feliz idéia, transformar o maior de seus sucessos da Broadway numa espécie de ópera de bolso! O Romeu e Julieta do West Side, logicamente, repetiu na lírica o sucesso estrondoso alcançado em sua estréia na Broadway. E a canção "Maria", um verdadeiro hino, jamais foi interpretada por quem quer que seja com tanto sentimento, tanto virtuosismo, tanta alma! De fato, aquele foi o som mais bonito que já tinha ouvido, para ser coerente com a brilhante letra da canção.
Todo o disco, aliás, é um primor de criatividade e beleza. Mas "Maria" por Carreras é insuperável. Com que delicadeza ele vai construindo e pontuando a melodia, até que alce vôo e chegue ao auge, para depois retornar à suavidade inicial! Nessa canção, Josep Carreras abusa da perfeição de sua excelente forma vocal, alternando-se entre os seus inesquecíveis pianíssimos e agudos irretocáveis, nos momentos certos.
"Maria" é uma das canções que incluí no meu aparelho de mp3 - que, usado com parcimônia em função dos possíveis riscos à audição, às vezes pode ser um bom companheiro de viagem. Adoro aquele começo que quase não se ouve, o "sussuro gentil" que marca a introdução e que vai crescendo, alargando-se amorosamente até encher toda a pauta musical, a sala de ensaios, a rua, o quarteirão, o mundo.
A cada vez que a escuto, "Maria" me faz evocar aquele momento: a revelação de um artista num momento de superar limites. Para mim, isso é mesmo a cara do Carreras - alguém que se superaria, e continuaria a se superar, pela vida afora.



sábado, 27 de setembro de 2008

Uma Bohème para lembrar sempre

Carreras e Teresa Stratas na Bohème mais representada
da história, a montagem de Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera

Hoje é 28 de setembro de 2008, e me dou conta que estou há quase dois meses ausente desse espaço tão querido e particular para mim, dedicado a Josep Carreras. Falta de assunto decerto é que não foi: há tanto a contar! Desde que me dispus a abrir o cofre das lembranças por aqui, tenho me espantado sempre com a quantidade de pequenas coisas que foram ficando guardadas, embora sem amarelecer, nos meus arquivos internos... Mas voltemos à carga, pois o bimestre mergulhado em trabalho já é passado, e hoje é o futuro onde a memória se renova sempre.
No dia 19 de setembro assisti, no Rio de Janeiro, à última récita da produção de La Bohème comemorativa do ano Puccini. Foi um projeto Brasil-Itália, com artistas dos dois países, que cumpriu condignamente a sua função. Brilharam no palco os tenores Fernando Portari (Brasil) e Jesus Garcia (EUA), que se revezaram como Rodolfo; as sopranos Rosana Lamosa (Brasil) e Adriana Damato (Itália), como Mimì, além de Gabriella Pacce como Musetta. Os barítonos Rodrigo Esteves e Homero Velho viveram, respectivamente, Marcello e Schaunard, enquanto Colline foi encarnado pelo baixo Luiz Ottavio Farias.
Nada mal, mas... o que fazer, se meu coração projetava, na boca de cena, o filme da inesquecível montagem de Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera, com Josep Carreras e Teresa Stratas nos papéis principais e regência de James Levine?
Tenho até hoje a fita em VHS - e um bom aparelho para reproduzi-la. E como foi difícil conseguir! Mas devo o obséquio a meus amigos Ricardo Pereira e Roberto Kovaks, que foram sensacionais na fase inicial do meu aprendizado operístico. Naquela época eu não tinha sequer um reprodutor de vídeo, de modo que as sessões eram organizadas em casas de amigos. Como curti, ri e chorei com aquela Bohème, feita sob medida para um Josep Carreras no auge de sua forma e ardor, e para a aparente fragilidade da múltipla Teresa Stratas! Zefirelli, um rei da beleza, pensou em cada detalhe com tal preciosismo e cuidado que essa montagem permanece até hoje como a mais querida de todas! Há seis meses atrás, no dia 29 de março, o grande diretor foi homenageado na 347a. apresentação de sua Bohème. A homenagem aconteceu durante o entreato, quando Zefirelli foi cercado pelo carinho de todo o elenco, encabeçado por Angela Ghiorghiu e Ramón Vargas. Prova de que o tempo não apaga o encanto de uma montagem que parece ter vindo sintetizar todas as outras.
A Bohème de Zefirelli estrou no Metropolitan Opera no dia 14 de dezembro de 1981, aclamada por uma onda tonitruante de aplausos, como a testa a crítica publicada no The Christian Science Monitor, disponível nos arquivos do Metropolitan. Bem, eu só vim a ver a fita dez anos depois, mas para mim era como se a história real dos pobres amantes estivesse se desenrolando bem ali, à minha frente. Contou a meu favor o fato de ainda saber pouco sobre a ópera, pois atirei-me a ela com o coração mais aberto, apenas com a leitura de uma sinopse. E vivi todo o encantamento da Bohème mergulhada em felicidade, fui fundo em cada detalhe. Carreras era todo coração, puro e desmedido, a voz linda como nunca. Stratas, perfeita, assim como Renata Scotto no papel de Musetta. Gostei de tudo e transformei-a, dentro de mim, num espaço sagrado de memória, pois todas as Bohèmes que vieram depois foram pontes para voltar a primeira, à mais querida, a que meu coração escolheu - e o mundo também, como confirmam as 347 apresentações recém-comemoradas.
Do alto da minha galeria, no último dia 19, não pude deixar de me imaginar no Metropolitan, naquela noite de dezembro de 1981 - atônita, como todo mundo, diante do assombroso Rodolfo de Carreras, que só viria a conhecer uma década depois. E foi bom, ali de cima e ao som da inefável música de Puccini, sentir saudade do que não vivi.