sábado, 27 de setembro de 2008

Uma Bohème para lembrar sempre

Carreras e Teresa Stratas na Bohème mais representada
da história, a montagem de Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera

Hoje é 28 de setembro de 2008, e me dou conta que estou há quase dois meses ausente desse espaço tão querido e particular para mim, dedicado a Josep Carreras. Falta de assunto decerto é que não foi: há tanto a contar! Desde que me dispus a abrir o cofre das lembranças por aqui, tenho me espantado sempre com a quantidade de pequenas coisas que foram ficando guardadas, embora sem amarelecer, nos meus arquivos internos... Mas voltemos à carga, pois o bimestre mergulhado em trabalho já é passado, e hoje é o futuro onde a memória se renova sempre.
No dia 19 de setembro assisti, no Rio de Janeiro, à última récita da produção de La Bohème comemorativa do ano Puccini. Foi um projeto Brasil-Itália, com artistas dos dois países, que cumpriu condignamente a sua função. Brilharam no palco os tenores Fernando Portari (Brasil) e Jesus Garcia (EUA), que se revezaram como Rodolfo; as sopranos Rosana Lamosa (Brasil) e Adriana Damato (Itália), como Mimì, além de Gabriella Pacce como Musetta. Os barítonos Rodrigo Esteves e Homero Velho viveram, respectivamente, Marcello e Schaunard, enquanto Colline foi encarnado pelo baixo Luiz Ottavio Farias.
Nada mal, mas... o que fazer, se meu coração projetava, na boca de cena, o filme da inesquecível montagem de Franco Zefirelli para o Metropolitan Opera, com Josep Carreras e Teresa Stratas nos papéis principais e regência de James Levine?
Tenho até hoje a fita em VHS - e um bom aparelho para reproduzi-la. E como foi difícil conseguir! Mas devo o obséquio a meus amigos Ricardo Pereira e Roberto Kovaks, que foram sensacionais na fase inicial do meu aprendizado operístico. Naquela época eu não tinha sequer um reprodutor de vídeo, de modo que as sessões eram organizadas em casas de amigos. Como curti, ri e chorei com aquela Bohème, feita sob medida para um Josep Carreras no auge de sua forma e ardor, e para a aparente fragilidade da múltipla Teresa Stratas! Zefirelli, um rei da beleza, pensou em cada detalhe com tal preciosismo e cuidado que essa montagem permanece até hoje como a mais querida de todas! Há seis meses atrás, no dia 29 de março, o grande diretor foi homenageado na 347a. apresentação de sua Bohème. A homenagem aconteceu durante o entreato, quando Zefirelli foi cercado pelo carinho de todo o elenco, encabeçado por Angela Ghiorghiu e Ramón Vargas. Prova de que o tempo não apaga o encanto de uma montagem que parece ter vindo sintetizar todas as outras.
A Bohème de Zefirelli estrou no Metropolitan Opera no dia 14 de dezembro de 1981, aclamada por uma onda tonitruante de aplausos, como a testa a crítica publicada no The Christian Science Monitor, disponível nos arquivos do Metropolitan. Bem, eu só vim a ver a fita dez anos depois, mas para mim era como se a história real dos pobres amantes estivesse se desenrolando bem ali, à minha frente. Contou a meu favor o fato de ainda saber pouco sobre a ópera, pois atirei-me a ela com o coração mais aberto, apenas com a leitura de uma sinopse. E vivi todo o encantamento da Bohème mergulhada em felicidade, fui fundo em cada detalhe. Carreras era todo coração, puro e desmedido, a voz linda como nunca. Stratas, perfeita, assim como Renata Scotto no papel de Musetta. Gostei de tudo e transformei-a, dentro de mim, num espaço sagrado de memória, pois todas as Bohèmes que vieram depois foram pontes para voltar a primeira, à mais querida, a que meu coração escolheu - e o mundo também, como confirmam as 347 apresentações recém-comemoradas.
Do alto da minha galeria, no último dia 19, não pude deixar de me imaginar no Metropolitan, naquela noite de dezembro de 1981 - atônita, como todo mundo, diante do assombroso Rodolfo de Carreras, que só viria a conhecer uma década depois. E foi bom, ali de cima e ao som da inefável música de Puccini, sentir saudade do que não vivi.


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