quinta-feira, 29 de maio de 2008

Margarida, uma luz

Margarida e um amigo transplantado
Foto: Arquivo pessoal

Ela conta que foi como um passe de mágica. Ou seria um instante de extrema consciência, aquilo a que muitos aludem como sendo uma iluminação? No exato momento, no Instituto Nacional do Câncer do Rio, em que um dos seguranças que atendiam Josep Carreras (o meu anjo, como ela o chama até hoje) colocou-a diretamente sob sua proteção e próxima do tenor, Margarida Maria de Finis Barros - ou simplesmente Guida - começou de fato a trabalhar pela causa da leucemia.

Muito atenta e observadora, ela já tinha visto muita coisa. Sabia onde a ajuda era necessária e o que era preciso fazer. A quatro mãos com o marido Luiz Fernando, montou o seu site na Internet, Medula Óssea - Doar em vida salva, em princípio para divulgar informações confiáveis sobre a doença, as possibilidades de tratamento, os locais certos a procurar. Mas o site, acima de tudo, faz campanha e esclarece sobre o processo de doação de medula óssea. O slogan "Doar não dói, salva" tem corrido o Brasil e o mundo, trazendo esperança para muita gente.

Em pouco tempo, o site virou fórum para troca de experiências e ajuda direta. Através de suas páginas chegaram a Margarida muitas pessoas, em maior ou menor grau de desespero, fé, confiança, realistas e fora da realidade, otimistas ou nem tanto, alegres, tristes, corajosas ou muito assustadas. E para todas ela sempre teve uma palavra, uma informação vital, a sugestão de um caminho. Daí para o seu envolvimento com entidades empenhadas no mesmo propósito, foi um pulo. Casas de apoio, instituições, associações, médicos, especialistas, doadores de medula e também de recursos... Hoje Margarida, que acompanhou os primeiros passos do REDOME - Registro de Doadores de Medula Óssea, o órgão brasileiro que canaliza os doadores de medula óssea e oferece gratuitamente os exames necessários, é uma referência no Brasil sobre medula óssea. E tudo por causa de Josep Carreras. Vai-se lá saber que corda interna esse homem tocou dentro dela, com sua voz e sentimento, com sua luta e coragem, com a dedicação incansável ao próximo?

Conheci Margarida justamente em seu "dia de anjo". Já se vão doze anos e continuamos muito amigas. Com seu conhecimento, interesse e percepção, tenho aprendido muito. Sempre que posso, tenho colocado a seu serviço - e, conseqüentemente, a serviço da causa da leucemia - minhas aptidões jornalísticas, meu faro de repórter que nunca dorme e algumas idéias, que para minha felicidade
têm sido úteis em algumas situações. Em todos os nossos encontros no Brasil, Carreras tem dedicado a ela a maior consideração e demonstrado o maior respeito pelo seu trabalho.

Lembro aqui um momento particularmente marcante, em que a nossa parceria deu um resultado humano até então sem precedentes para nós: em 2000, quando os Três Tenores se apresentaram no Estádio do Morumbi, Margarida teve a idéia de pedir à empresa de telefonia Vesper, uma das patrocinadoras do concerto, ingressos para levar treze crianças assistidas por uma instituição de apoio do interior paulista, à qual estava ligada na época. Claro que todas elas já sabiam muito bem quem era Josep Carreras, o que lhe tinha acontecido e a força com que ele superou seus problemas. Já era, portanto, uma inspiração. Mas vê-lo cantar - e talvez conhecê-lo - já estavam na categoria do sonho.

Conseguidas as entradas, desenvolvemos um trabalho a quatro mãos para que as crianças pudessem conhecer Josep Carreras. Quando o tenor vem apresentar-se no Brasil e há algum assunto relevante sobre a leucemia a tratar com ele, tenho o costume de enviar um fax ao hotel, pois sei que um hóspede de sua importância jamais deixa de receber qualquer mensagem enviada em seu nome. E foi o que fiz: expliquei a situação e pedi que recebesse os meninos.

Até a hora de sairmos para o Estádio, de táxi para não perder tempo no trânsito, não havia resposta. No meio do caminho, porém, toca o celular de Margarida: era um representante da agência que promovia o Concerto dos Três Tenores, informando que, quando chegássemos, haveria um representante a postos para nos entregar as credenciais adesivas para acesso ao palco e camarins. Dito e feito: no local combinado, a nossa porta de acesso, lá estava o rapaz. Foi um reconhecimento à antiga, pela descrição das roupas e do tipo físico. Entregou-nos as credenciais e informou que teríamos de estar próximos ao palco, com toda a criançada, assim que terminasse o concerto.

Desnecessário dizer que ficamos tensas quase o tempo todo. Enquanto nossos lugares eram na platéia, ou seja, no gramado, as crianças estavam numa das arquibancadas. Para ajudar, os celulares não funcionavam dentro do estádio! Pensamos rápido e decidimos que, se não fôssemos atrás delas na hora do famoso medley final, simplesmente não conseguiríamos. Deixamos então o estádio às carreiras e saímos à procura da entrada certa para as arquibancadas. Meu Deus, que sufôco! Perguntávamos daqui, dali - e nada. Por sorte sempre há umas boas almas no caminho da gente quando a causa é válida: um dos porteiros nos ajudou a localizar o grupo. Mas isso foi só meio alívio: como atravessar todas as portas que tínhamos acabado de cruzar com aquele bando de gente? Teríamos de dar mil e uma explicações e o tempo era mínimo. O rapaz da agência tinha fornecido o número do celular de um dos seguranças alemães de Carreras, mas era quase impossível ligar com o barulho e, quando finalmente consegui, o sujeito não entendeu nada. Em suma: era preciso agir, e o quanto antes.

Dirigi-me então a um dos seguranças do campo e disse: - Moço, essas crianças aqui têm câncer e têm credenciais para o camarim do Sr. Carreras. Preciso que o Sr. nos autorize a atravessar o gramado com elas até a entrada do camarim, porque nós precisamos chegar lá antes do fim do concerto.

O rapaz me olhou fixamente e pediu três segundos para fazer uma consulta pelo rádio, antes de me responder sim ou não. Confesso que duvidei e pensei, por um momento, que tinha sido um esforço vão. No entanto, em exatos três segundos ele voltou e disse: - Eu mesmo vou conduzir o grupo até os camarins. Milagres da vida!

O medley já ia adiantado, e foi a feliz trilha sonora da nossa caminhada de um extremo a outro do gramado do histórico Morumbi. Nossa amiga Elizabeth, que nos acompanhou ao concerto, apesar de credenciada, não conseguiu passar, sabe-se lá por que. Mas nem por isso ficou triste, pois o mais importante era que as crianças chegassem.

Enquanto aguardávamos, duas meninas menores viram, bem ao nosso lado, a apresentadora Adriane Galisteu, acompanhada do então namorado Rogério Gallo, também aguardando para entrar. - Será que ela tira uma foto com a gente? Consultada, Adriane foi da maior simpatia e carinho com toda a turminha. Está aí um detalhe que nunca vou esquecer, e pelo qual serei eternamente grata. A moça, muitas vezes mal interpretada pela mídia, é simpática e, além disso, é gente de verdade.

Fim de concerto: em alemão, três seguranças sem sorrisos, porém polidos, conferem as ordens, contam os credenciados e nos conduzem, por um corredor comprido, aos camarins modulares. Como nas portas não havia nada escrito, passamos batido pela de Carreras. Sorte que ele mesmo veio ao nosso encontro, todo alegre e simpático como sempre. Falou de futebol com os meninos, apertou muitas mãos, afagou várias cabecinhas. Como brilhavam aqueles treze pares de olhinhos! Lá para as tantas, pasmem, perguntou-me: - Você não vai querer tirar uma foto? E eu nem tinha me tocado!

Logo surgiram algumas máquinas, nenhuma digital, mas as fotos estão aí para a história conferir. Uma delas, que na época enviamos à saudosa Sharon Herzog, falecida em 2004 e que por muitos anos nos agraciou com muitas informações enviadas por email pelo site www.jcarreras.com, ilustra nesse blog o meu post "Ser fã". Logo atrás de mim está Margarida, ainda de cabelos compridos e muito compenetrada.

Acompanhavam Carreras naquela viagem o irmão Alberto e sua esposa, que estavam no camarim e vieram participar daquele momento, a princípio reservados, mas logo em seguida totalmente conquistados pelas crianças e visivelmente emocionados.

Mais que felizes, Margarida e eu sentimo-nos recompensadas. Em silenciosa cumplicidade, repartimos com Josep Carreras o pão do espírito, o único alimento que nunca acaba.

No final de março, em meu retorno do concerto de Curitiba - para o qual, graças à insensibilidade dos prepostos do grupo organizador, Margarida não foi convidada -, passei um dia com ela em São Paulo. Olhávamos justamente aquelas fotos e Margarida me dizia que, do esfuziante grupo de treze, apenas uma ainda resiste. Triste, sim, mas naquele momento, naquele Morumbi mágico, todos foram muito felizes porque puderam privar com alguém que personificava o estímulo para lutarem pela vida. É por essas e outras que Josep Carreras, o ser humano em pleno exercício da sua segunda vida, está e estará para sempre no meu coração. E também no de Margarida, sem dúvida alguma.

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