terça-feira, 1 de abril de 2008

Ah! Mi tradia!...


Sentadinha na sala de espera da casa do engenheiro Linhares, a primeira pessoa a quem procurei quando resolvi tentar comunicar-me com a música de Josep Carreras, não escapava ao escrutínio de D. Angela, sua esposa, professora de canto e muito altiva. Mas eu não me importava. Linhares, especialista em acústica e aposentado já há alguns anos, era um aficionado da ópera e, dizia-se, possuía muitos discos. E quando digo discos, quero dizer os famosos long-plays em vinil, com doze faixas e o som mais doce que há, mesmo em plena era dos cds e do mp3.

Ele quis saber o que tanto eu queria com o Carreras, afinal. Complicado explicar o que é pura emoção, simplesmente, um gostar e sensibilizar-se do tamanho do mundo e sem lógica alguma. É claro que, com o tempo, fui aprendendo o respaldo "técnico" para os sentimentos que me povoavam na época, mas naquele momento eu só queria mesmo ouvir, ouvir, ouvir.

E foi então que, na sala de visitas do número 100 da rua 103 (em Volta Redonda, cidade industrial por excelência, as ruas eram numeradas), a minha alma recebeu, pela primeira vez, a ária Quando le sere al placido, da ópera Luisa Miller, de Giuseppe Verdi.

O disco continha outras coisas, como as sete canções espanholas de Manuel de Falla, por exemplo. Na capa, uma foto de meio corpo de Carreras; na contracapa, um rosto enorme, intrépido, cabelos fartos e um penetrante olhar de quem tinha à sua frente o mundo.
Pregada à cadeira, eu parecia um vaso cheio de água quase até à borda. As palavras elegantemente pronunciadas, a sonoridade redonda e densa, a beleza da peça, tudo me tomava, e eu tratava de me cuidar para não transbordar (e por onde seria? pelos olhos, é óbvio, já que eu sempre fui um desastre para conter minhas próprias marés).

I questa mano stringermi
dalla sua man sentia
Aaaah! Ah! Mi tradia! Ah! Mi tradia!

As águas tremiam dentro, eu a equilibrar-me fracamente nas paredes do corpo. A bem-comportada sala que parecia girar, e aquela voz a levar-me cada vez mais depressa. Meu Deus, não sei como me mantive na mesma posição, sem desabar no escoadouro, até o final da música e das minuciosas explicações do engenheiro operístico sobre a vida de Carreras.

Saí dali bem mais tarde, muito grata ao amigo pelo tempo e paciência que me dedicou. Generosas doses de Carreras, uma Lakmé com Sutherland, café e biscoitos, D. Angela e suas perguntas mil. Mas havia Luísa Miller, e eu sentia que, contrariando o libreto, Carreras e a ópera não me haveriam de trair.

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