sexta-feira, 4 de abril de 2008

Cantar con el alma


- Ah, mas então você não sabe?

As palavras do meu grande amigo Carvalho, ex-colega da empresa e operístico de carteirinha, ficaram paradas no ar enquanto eu, do outro lado da linha, dizia apenas:

- Não. O que foi que aconteceu?

Era julho de 1990, final de Copa do Mundo. Uma das emissoras de TV aberta anunciava uma apresentação de Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras, com regência do maestro Zubin Mehta, em comemoração ao final da competição. Seria uma transmissão ao vivo.

Tratei de me programar para não perder aquilo. À menção do nome de Carreras, veio-me à mente a lembrança viva de um jovem lindo e de forte presença, fartos cabelos e pavio curto - que, num acesso de raiva (que até se poderia chamar de engraçado, não fossem as circunstâncias), atirara ao chão suas partituras e saíra batendo várias portas durante as gravações de West Side Story com regência de seu autor, o maestro Leonard Bernstein. O making-of, que se tornou um clássico, fora exibido na TV alguns anos antes. Foi a primeira imagem de Carreras que guardei na lembrança, junto com aquela voz que, como nenhuma outra antes, tornava absolutamente únicas as modulações da grande canção Maria.

A essa altura já ficou claro que nunca fui operística de berço. No aspecto politicamente correto, digamos que a partir de uma certa idade, quando me mudei para o Rio de Janeiro e tive o indizível prazer de mergulhar mais fundo na cultura, comecei a interessar-me pela lírica, com o auxílio de uma coleção de óperas famosas que adquiri em fascículos, na banca de jornal. Eram gravações históricas dos principais trechos das óperas mais conhecidas, com um bom material de apoio incluído.

Meu marco zero, porém - aquele momento definitivo em que a música dilui algo dentro da gente e toma as veias sem piedade - foi o filme La Luna, produção americana estrelada por Jill Clayburgh. A protagonista é uma diva que cultiva uma estranha relação com seu filho adolescente. Hoje, se me perguntarem sobre o enredo, isso é o máximo que consigo lembrar, porque durante o filme todas as minhas atenções se voltaram para a música. Foi um arrebatamento, um deslumbramento, algo que não consegui controlar em momento algum. Quando o filme acabou, eu tinha de ver de quem era aquela voz. Fiquei plantada na cadeira esperando os créditos - e, quando estes finalmente apareceram, soube que todas as gravações utilizadas para dublar a atriz eram de Maria Callas. Estava explicado.

No dia do concerto, sentei-me à frente da televisão muito concentrada. Toda a minha bagagem era a imagem de Josep Carreras que tinha daquele momento Bernstein do passado. Veio Zubin Mehta com o intermezzo inicial, veio Pavarotti - e veio Carreras com a ária La solita storia, de L'Arlesienne. Só que era um outro homem. Minha respiração parou ao ver a imagem de alguém que parecia mais velho, mais magro, embora lindo ainda. E com a mesma voz que me prendera da primeira vez. Na minha santa ignorância, fiquei a imaginar como se havia dado tal transformação. Mas o espetáculo - e que espetáculo! - tomou-me de tal forma, a música foi tão mais forte, que a surpresa da visão de Carreras ficou momentaneamente esquecida.

No dia seguinte, lembrei-me do Carvalho e telefonei para perguntar. Foi então que soube da leucemia, da recuperação e do retorno aos palcos. E aí começou minha jornada para encontrar a essência daquele ser humano que tinha sido agraciado com tanto.

Uma das coisas que logo soube, em minhas pesquisas, foi da existência de um livro chamado Cantar con el alma, em que Josep Carreras relatava o episódio da doença e as coisas por que passara. Tenho que ler isto, foi o meu primeiro pensamento. Mas como? Edição brasileira, nem em sonho. Descobri que só tinha sido publicado na Espanha e nos Estados Unidos. É claro que preferia ler em espanhol, sentir suas próprias palavras, a estrutura de pensamento em sua própria língua. Saí perguntando para todo canto como é que podia conseguir a preciosidade. Algumas livrarias poderiam importá-lo, mas sairia caro demais para mim naquele momento.

Por fim a minha irmã Lenita, que era amiga de uma aeromoça casada com um piloto da aviação civil, conseguiu que esse senhor comprasse o livro na Espanha e o trouxesse para mim. Recordo-me até hoje de minha ida até o escritório dele, na Rua da Assembléia, no Rio de Janeiro, numa tarde chuvosa e cinzenta. Levava os dólares contados para pagar a compra e subi muitos andares, no edifício onde fica a Faculdade Cândido Mendes.

O santo homem que me fez esse enorme favor entregou-me, então, uma sacola plástica da loja El Corte Inglés, que tremia com a alma de Carreras dentro. Eu não sabia o que fazer, se abria, se folheava, se lia nem que fosse um pedaço... Acabei decidindo ir logo para casa, onde teria mais prazer em percorrer as páginas guardando o mais profundo silêncio, como exigia um momento solene como aquele.

A leitura de Cantar con el alma foi muito importante para mim. Pude escutar suas palavras, acompanhar suas emoções, ter uma visão maior dos momentos mais difíceis e das grandes alegrias que experimentou, após a cura da doença. Enfim, como se diz no jornalismo, pude ouvir a versão do próprio. E passei a admirá-lo mais ainda depois disso.

Até hoje esse livro aparentemente simples, mas de uma força avassaladora, tem um lugar especial na minha casa. Nem sempre o visito, mas sei que está lá, e ainda treme quando porventura o toco. Fiz questão de guardar também a sacolinha do El Corte Inglés que o transportou até mim, dobradinha num canto. Só para não esquecer o que não se pode mesmo esquecer.

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