segunda-feira, 7 de abril de 2008

Tributo



Sinto falta de Pavarotti, apesar de preferir Carreras.

Sinto falta do jeito bonachão, dos enormes lenços ensopados, do suor a molhar os cabelos, dos gestos fartos à moda muito, muito antiga. Devia ser assim que os tenores faziam quando minha avó, ainda uma meninota analfabeta que fazia faxina numa maison muito fina em São Paulo, apertou boquiaberta a mão de Enrico Caruso, que era amigo da dona do estabelecimento e lá fora provar um fraque. A madame fez questão de perfilar todas as suas funcionárias e lhes oferecer, generosamente, a chance de cumprimentar o grande gênio da ópera.

Sinto falta da delicadeza e beleza da sua voz, apesar de sempre preferir Carreras. E daquela figura avantajada que sempre associei ao Stromboli, o dono do circo que raptou Pinóquio e o prendeu numa gaiola, no inesquecível desenho de Disney.

Pavarotti morreu em setembro passado. Na época estava mergulhada na produção de um festival de cinema, e a notícia escorreu-me pelo dorso sem queimar. E assim fiquei por muito tempo, como se tivesse sido anestesiada com agulhas de acupuntura, até que assisti o vídeo de Paul Potts.

Poderia ser mais uma bobagem do YouTube, onde há loucura para todos os gostos. O concorrente de um dos inúmeros shows de talento que povoam a televisão, sujeito dos mais comuns, cantou um Nessun Dorma tão precioso que todos choraram, júri, platéia, câmeras, o diabo.

Só que, antes de os outros começarem, eu já havia estourado feito uma barragem rompida. Não conseguia parar de chorar, e quanto mais chorava mais tinha a certeza de que não era por Paul Potts, e sim por Pavarotti. A música só fez desaguar a tristeza no meu peito.

Sinto falta do espalhafato de suas roupas, das écharpes coloridíssimas no pescoço, das boinas vermelhas. E do que era grande e do que era singelo. Sinto falta do número três, com "t" de tenores, que a despeito de todas as críticas fez tremerem as listas de vendagem de discos, tão acostumadas a banalidades. Com eles, a lírica rejuvenesceu e criou asas. E voltou direto ao lugar que lhe pertencia de direito.

Sinto falta do carinho dele com Josep Carreras, de sua enormidade artística, das grandes alegrias que a sua voz nos deu nessa vida.

Sinto falta do Core 'ngrato que tenho num cd com a letra completa, apesar de preferir ouvi-lo com Carreras. E da Recondita Armonia que abriu o concerto das Termas de Caracalla. De ouvi-lo falar que o pai cantava melhor que ele, e de uma frase que nunca esqueci, numa entrevista que concedeu em sua casa, em Modena, à jornalista brasileira Marília Gabriela: - Todas as pessoas que têm sucesso na vida precisam ter talento, disciplina e sorte juntos. Se faltar um, não chegam lá.

Sinto falta do recital solo que assisti em São Paulo, num estádio lotado. No intervalo, despontavam tenores de todos os pontos da platéia, numa verdadeira competição de dós de peito. Momentos de glória para tantos anônimos da respeitável colônia italiana da terra da garoa, que exibiam seus dotes no mesmo espaço que o seu grande ídolo...

Ainda lembro de vê-lo sair do camarim do Morumbi num daqueles carrinhos que circulam em estádios, após a apresentação dos Três Tenores em São Paulo, em julho de 2000. Acompanhei-o com o olhar durante algum tempo, numa insuspeitada despedida anônima. Mesmo com ar cansado, aquele homem tinha algo de eterno, não sei explicar direito.

Fica aqui o meu tributo e uma espécie de saudade - apesar de preferir sempre, sempre, Carreras.




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