quarta-feira, 16 de abril de 2008

Catalunya

Casa Battlò, Barcelona - Obra de Antoni Gaudí
Foto: www.eporfalaremamor.blogger.com.br

Um belo dia, em 1982, resolvi dar a louca: tinha acabado de me formar e decidi que iria à Europa. Já tinha praticamente reservada uma excursão de ônibus pelo sul do Brasil com minha mãe, mas não resisti às outras idéias que começaram a entrar em minha cabeça, de modo que mudei de direção.
Era julho, certamente o pior mês para uma aventura daquelas, por causa do impiedoso verão europeu e do afluxo de turistas americanos, mas a desavisada aqui não se deu por achada: o roteiro, marcado pelo improviso (ah, doce ilusão!), começava na Espanha e passava pela França, Itália, Suíça e Alemanha. Coisa de coração de estudante, mesmo: ia procurar cultura e pessoas que a vida me tinha guardado.
Cheguei à Espanha ainda no rescaldo da Copa do Mundo. Os motoristas de táxi, a família dona da pensão onde fiquei, todos só falavam disso, "Ai que pena, Brasil!". E eu a tentar sobreviver ao calor escaldante e o sol que só se punha às dez da noite.
Naquela época, eu ainda não fazia a mais remota idéia de que existia um homem chamado Josep Carreras. A fase lírica ainda não tinha começado.
Curti Madrid e o divino Prado como pude, considerando que tive apenas dois dias, e rumei para Barcelona num trem noturno da RenFe. Viajei cercada por operários da ferrovia, o que aliás adorei porque me senti em casa. Quase tão em casa quanto na Usina da CSN, onde já trabalhava há alguns anos.
Barcelona foi uma adorável profusão de cores, sons e sentidos, a bandeira vermelha e amarela desfraldada em toda parte, e aquela magia que sentia mas só mais tarde viria a entender
. Mas uma coisa me chamou a atenção de imediato: todas as placas de sinalização, todos os anúncios, todas as placas de lojas - tudo, tudo, tudo estava escrito em espanhol e em catalão. Em cada legenda de cada peça de qualquer museu, lá estavam os dois idiomas de mãos bem dadas.
Aquilo me encantou. Gosto de gente que tem orgulho da sua terra, das raízes, daquilo de que é feita. Tive um imediato respeito pela lengua catalana, cheia de sonoridades exuberantes, muitos "x", "ç", acentos à vontade e várias palavras que se escrevem iguaizinhas ao português.
Sem conhecer Carreras, sem sequer adivinhá-lo, sucumbi à paixão por aquela cidade de rosto amplo e aberto, como um abraço. Andei na rua, entrei em lojas, fui ao cinema, visitei o delicioso Museu Picasso, vivi o espanto e o êxtase nos braços de Gaudí e suas arcadas improváveis... mas sobretudo rendi-me incondicionalmente ao espírito catalão. Havia uma força que eu não conseguia precisar, mas que estava em toda parte. Tudo parecia me dizer "aqui é a minha terra, olhe bem."
Anos mais tarde, quando, após retornar de Buenos Aires, escrevi um artigo sobre Josep Carreras no Jornal de España, um periódico voltado para a colônia no Brasil, recebi um telefonema da Sra. Maria Faus, uma catalã maravilhosa que vivia em São Paulo. Fizemos amizade e cheguei a visitá-la, no bairro de Campo Belo. Dirigia, voluntariamente, numa obra social para idosos da colônia espanhola paulista e, claro, era fã do Carreras. Além de me oferecer um livro com poemas de Natal em espanhol e catalão, D. Maria Faus ensinou-me muito sobre a sua gente. Contou-me, por exemplo, que na época do Franquismo era proibido viver a realidade das várias "pátrias" dentro da Espanha: a língua era proibida, os livros, a música, a dança... Disse-me que, na sua juventude, era comum as pessoas se reunirem nas praças para dançar a sardana, um dos ritmos mais contagiantes da terra.
- Todo mundo jogava a bolsa no chão, então ficavam todas aquelas bolsas amontoadas, e a gente ia para a roda dançar. Ficávamos até de madrugada! Era lindo! - emocionava-se.
Com a ditadura aquilo já não era possível, mas mesmo assim todo mundo fazia reuniões clandestinas, nas casas, para dançar a sardana.
- Nunca desistimos, orgulhava-se.
Acho engraçado alguém pensar que, proibindo as pessoas de se expressarem, conseguirá uni-las. Há uns versos da canção Cantoria, de Ivan Lins e Vitor Martins, que dão bem o tom do que é a capacidade de resistir: "Somos a aroeira/madeira dura de se cortar/mesmo depois de morta, ela brota/só pra desafiar!". Pois a bendita resistência dos catalães foi o que salvou a sua cultura e a sua história. Na biografia do inacreditável Lluís Llach, artista que existe neste mundo para nos reconectar com a nossa origem de luta e santa rebeldia, há um trecho que diz que ele foi preso uma vez, após um show, só porque ousou dirigir-se ao público em catalão, na época em que isso era proibido.
Mas voltemos a Josep Carreras, que sintetiza essas forças todas com sua habitual elegância e aquela firmeza discreta, principesca, que lhe é peculiar. Neste blog escrevo sempre o seu nome na forma original catalã, para simbolizar o grande respeito que tenho pela sua cultura. Ouvi-lo cantar em seu idioma é um susto de felicidade, sempre. Já é tradição Carreras contar ao público, antes de cantar a encantadora
El Cant dels Ocells (O canto dos pássaros), que o grande Pablo Casals (em catalão, Pau Casals) sempre encerrava seus concertos no exílio com essa canção tradicional, como um tributo indignado ao sofrimento de seu povo. Dos dois discos de canções catalãs que gravou, tenho grande paixão pelo primeiro. Ouvia-o sempre com a letra na mão, acompanhando as palavras e buscando entender a lógica da pronúncia. Tão bonito, sempre...
No ensaio de Curitiba, ainda distraída numa das pausas, fui tomada por uma emoção enorme quando ouvi a introdução de Rosó, uma das minhas favoritas do disco. Na verdade, chama-se Pel teu amor, e Rosó, ou seja, Rosa, é o nome da musa. Mas no coração ficou mesmo Rosó. Minha garganta insistia em me trair enquanto Carreras passava a música. Sorte que a platéia quase vazia estava escura e os sobressaltos de uma pessoa sentada, ainda que envolta em águas prestes a desatar-se, não podiam ser vistos do palco...

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