quinta-feira, 24 de abril de 2008

Curitiba, você é assim...


Ópera de Arame - Curitiba, Paraná
Foto: Luis Toporowicz

Curitiba, você é assim,
a certeza de um amor sem fim!
De qualquer parte do mundo,
um abraço, uma canção
- um povo, um só coração!

(Trecho do Hino dos 300 anos de Curitiba)


Passar 12, 13 horas num ônibus, em 1993, era moleza. Hoje não garanto que teria tanto fôlego, mas... o fato é que saí de Barra Mansa às sete e meia da noite de uma quinta-feira, no início de abril, num amarelinho da Itapemirim e feliz da vida. Meu destino era Curitiba, onde aconteceria o primeiro concerto de Josep Carreras no Brasil.
Viajei na véspera da privatização da CSN, onde trabalhava, deixando para trás a ansiedade coletiva que cercava aquele fato histórico e passei a noite na estrada, confabulando com minha própria ansiedade pelo instante de viver, em minha terra, uma alegria pelo menos parecida com a de dois anos antes, em Buenos Aires, quando conheci Carreras.
Assim que soube da notícia de que ele viria ao Brasil para protagonizar aquele que seria o histórico Concerto de Curitiba, quis saber de quem tinha sido a idéia. E descobri que tudo aconteceria por obra e graça do prefeito da cidade, Rafael Greca, um assumido fã de Josep Carreras. Taí alguém que já admiro sem conhecer, pensei. Por gostar do Carreras e pela coragem de trazê-lo!
Logo escrevi para ele, com meu entusiasmo e minha pequena história de devoção. Pois não é que o prefeito respondeu e me credenciou como jornalista para cobrir o evento? Radiante, fiz as malas e os melhores planos, junto com minha amiga Fátima, que seguiria do Rio e me encontraria em Curitiba.
Hospedamo-nos no Araucária Flat, um apart novinho onde ficariam também Josep Carreras e toda a comitiva do evento. Urgia não perder nenhum detalhe...
Ao chegar, às seis da manhã, mais surpresas da prefeitura me aguardavam: havia uma reserva em meu nome no hotel destinado aos jornalistas, que gentimente declinei, além de transporte para a entrevista coletiva, que aconteceria pouco depois na Ópera de Arame, bem ao lado do palco da festa, a magnífica Pedreira Paulo Leminski. No ônibus dos jornalistas pude constatar o peso das feras que teria ao meu lado naqueles memoráveis dias: Zuenir e Mary Ventura, Mary Galanternik, o grande crítico de música Luiz Paulo Horta, José Carlos Barbosa e uns tantos mais, todos muito agradáveis desde o primeiro momento.
Na Ópera de Arame, sobre um tablado, cadeiras bem posicionadas para que os jornalistas tivessem uma boa visão da mesa dos entrevistados. O tempo um pouco cinzento, mas nada frio. Acomodo-me na segunda ou terceira fila. Logo a seguir chegam Josep Carreras, o maestro Enrique Ricci e os organizadores do evento: Miriam Dauelsberg, pela Dell'Arte, e a Secretária de Cultura, Scylla Schulman, além do Prefeito Rafael Greca e sua esposa, uma autêntica catalã.
Quando estava prestes a sentar-se, Carreras me viu e cumprimentou-me. Ao retribuir a distinção, quase paguei o maior mico da história do Concerto de Curitiba: pelos desígnios imprevisíveis da Lei de Murphy, o pé direito traseiro da minha cadeira de ferro entrou inteiro num buraco do tablado!
Segundos de quase pânico, o desequilíbrio a crescer... e, por sorte, uma idéia rápida e feliz: apoiei a mão direita no chão e, com isso, evitei a queda praticamente certa. Recomposta a cadeira, tudo transcorreu na mais perfeita ordem; participei normalmente da coletiva, fiz minhas perguntas e tudo o mais.
Perto do final do evento, percebi um leve toque em meu ombro esquerdo, e uma voz inconfundível quase a segredar-me: - Olha, eu vi o que aconteceu com a sua cadeira. Se não tivesse visto, podia até dizer que foi de emoção porque o homem falou com você!
Era Zuenir Ventura, com seu adorável sorriso brincalhão. Daí em diante foi festa.
Depois descemos todos para visitar os jardins da Ópera de Arame, onde Carreras iria inaugurar uma placa marcando sua passagem - tudo muito bonito e bem organizado, com direito a um simpático brunch. No balcão encontrei o maestro Enrique Ricci, sempre sorridente e afável. Cumprimentamo-nos e observei que havíamos nos cruzado uma vez em Buenos Aires, dois anos antes. - Lembro-me perfeitamente desse dia - respondeu, com segurança e simpatia. - Estávamos no Hotel Plaza e fui eu que a anunciei ao Josep, quando subi - completou. Que memória, pensei com meus botões. A partir daí, e nos dias que se seguiriam, firmamos uma amizade que, ao longo de tantos anos, só tem sido motivo de alegria.
Mais tarde, quando eu e Fátima rumávamos aflitas para o ensaio, demos com duas moças - fãs do Carreras - que estavam a caminho do hotel para nos procurar, por indicação de um conhecido de Fátima. Falamos muito rapidamente, eu cheia de cuidados em não denunciar o nosso destino naquele momento. Mais de um ano depois, uma delas, Carmem, voltaria por outros caminhos e tornar-se-ia uma das minhas melhores amigas, Carreras à parte. Mas isso é outra história...


terça-feira, 22 de abril de 2008

Buenos Aires, 1991 - A chegada

Amanhecer em Buenos Aires
Foto daqui

Mês de julho, um frio horrível mas incapaz de conter as esperanças que transbordavam das minhas malas. Ia ver Carreras! O sonho que crescera tanto dentro de mim, e parecia impossível, ia realizar-se em algumas horas.
Confesso que a ficha relutou muito, até cair. No avião, uma espécie de eletrola mental reproduzia Piazzolla sem parar dentro da minha cabeça, Años de soledad, Sur e todo o repertório do disco feito com Gerry Mulligan. Até eu chegar às ruas da cidade, ao burburinho de uma tarde normal na grande metrópole, eu não entenderia de fato o quanto aquela música tinha cheiro, gosto, tempero mesmo daquela gente.
Tinha contratado um traslado que me deixou exatamente em O'Higgins, 1849, no bairro de Belgrano, onde viviam Clara e Mário. Os queridos pais de Cláudia me receberam como filha, na melhor tradição de quem tem vivência em programas de intercâmbio.
Na mesma tarde, Clara me acompanhou até o centro da cidade, refinado, europeu, movimentadíssimo. Passei na sucursal do Jornal do Brasil, onde fui propor uma matéria sobre os concertos de Carreras (jornalista faz pauta o tempo todo) e depois fui ao encontro da Sra. Jutta Olsson, na Fundação Teatro Colón.
A entrada na Av. Cerrito, atrás do teatro, era simples e requintada. Fiz-me anunciar e fui prontamente recebida.
Jutta Olsson era uma alemã típica, alta, loura, bem vestida e de idade indefinível. Trocamos os cumprimentos de praxe, recebi e paguei os ingressos, conversamos amenidades. Foi então que, distraidamente e do alto da sua experiência, perguntou-me:
- Você não quer ir esperar José no aeroporto, quer?
(Demorei uns segundos para acreditar no que ouvia. Mas foram só uns segundos).
- Claro que sim, responderam meus olhos atônitos e brilhando de felicidade.
- Então esteja na minha casa às cinco da manhã - disse, enquanto anotava o endereço num papel.
O pai de Cláudia, coronel da reserva, cultivado e elegante, fez questão de me levar. Já não lembro o endereço, minha memória galopa neste blog mas não chega a tais minúcias; só sei que era numa praça retangular, bem cuidada. Toquei a campainha e fui admitida no seleto mundo daquela figura ímpar. Móveis antigos, quadros, elegância. Sobre o piano, várias fotos. Detive-me numa delas, um instantâneo com Carreras e algumas outras pessoas, na Europa.
Logo a seguir chegou Facundo, um rapazinho de uns 14 anos talvez, que estudava canto e era uma espécie de discípulo dela, na companhia da elegante Estela Berisso e seu marido, ambos amigos da dona da casa. E lá fomos nós para Ezeiza, acompanhados dos primeiros rasgos da fria e rosada aurora de uma inesquecível manhã de julho, prestes a iluminar um sonho.

domingo, 20 de abril de 2008

Ricardo Pereira

Solistas da primeira montagem de Tosca, de Puccini:
Hariclea Darclée (Tosca), Emilio De Marchi (Cavaradossi),
Eugenio Giraldoni (Scarpia)


Na semana passada reencontrei casualmente meu grande amigo e mentor Ricardo Pereira em Botafogo. Deve ser de tanto que tenho pensado nele, desde que comecei este blog.

Ricardo é um desses raros personagens de alma generosa e natureza modesta, quase anônima. Em matéria de ópera, foi o meu grande formador, professor, companheiro de saudáveis delírios. E uma das primeiras pessoas que conduziu meus passos hesitantes na direção de Josep Carreras.

Foi o maestro D'Angelo, ensaiador do coro do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, quem me deu o seu telefone. - É a pessoa que mais conhece ópera - sentenciou. - Sei que terá prazer em ajudar.

E teve mesmo. Não só prazer, mas carinho, presença e interesse. Ensinou-me tudo, gravou fitas, emprestou discos raros, recomendou obras... A longa e prazerosa amizade com Ricardo foi além de qualquer curso superior, mestrado ou doutorado que eu decidisse freqüentar. Através dele conheci as óperas, os intérpretes e regentes antigos e novos, os estilos, as épocas, a história. Ricardo repartiu comigo também os amigos, todos operísticos e competentes: Samuel, Carlos Bouzas, Roberto Kovacz, Sergio Nepomuceno... Foi um período de intensa aprendizagem, troca e paixão pela música. O interesse inesgotável que tinha por Carreras estendeu-se a todo o universo da ópera, frutificou, floresceu.

Ricardo é pessoa de rara delicadeza, de uma distinção imensa. Poderia ser, ele mesmo, personagem de uma ópera! Casado com Marina, tem três filhos cujos nomes homenageiam a lírica: Floria (Tosca, obviamente), Leonora (da Forza del Destino) e Riccardo (de I Puritani). Conheci-os adolescentes, mas no recente encontro soube que Floria já está casada, Riccardo trabalha na TV Globo e Leonora acaba de se formar.

Ricardo sempre partilhou comigo o gosto pela voz e pelo estilo de Carreras. Talvez por isso tenha se dedicado tanto à paciente tarefa de me ensinar, mostrar gravações diversas para que eu pudesse comparar, discorrer sobre a semelhança com Giuseppe Di Stefano e muito mais. Com toda certeza, sua visão contribuiu muito para que eu compreendesse, mais e mais, Josep Carreras no conjunto de sua obra, presença e personalidade.

Diante de minhas lágrimas compulsivas e inexplicáveis quando ouvi pela primeira vez a canção Parlami d'amore, Mariù com Carreras, Ricardo pacientemente me preparou uma fita com todas as gravações que possuía, com vários tenores, para ver se me curava daquela malinconia.

Lembro que em 1991, em Buenos Aires, consegui comprar-lhe um exemplar do já então raro Cantar con el alma, cuja história já contei aqui. Num dos encontros com Carreras, pedi que autografasse para Ricardo e contei a história dos nomes de seus filhos. Falei sobre as meninas e, antes de chegar ao rapaz, Carreras arregalou os olhos e perguntou: - Meu Deus, e o garoto, se chama Radamés???

Ricardo adorou o presente - e lembrou-se de me dizer que ainda está num lugar de honra em sua estante.

No reencontro, abraçamo-nos muito comovidos na rua. Aproveitamos o momento e demos uma volta para relembrar os velhos tempos; contei sobre Curitiba, ele perguntou como estava Carreras, eu respondi que estava muito bem. Por algum tempo, ficamos a dividir as pequenas felicidades musicais que ainda nos encantam. E prometemos - claro! - nos ver novamente, ao som de uma ou outra ária.

Ricardo Pereira, meu querido amigo, foi e sempre será uma das principais referências do caminho que trilhei até Josep Carreras.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Catalunya

Casa Battlò, Barcelona - Obra de Antoni Gaudí
Foto: www.eporfalaremamor.blogger.com.br

Um belo dia, em 1982, resolvi dar a louca: tinha acabado de me formar e decidi que iria à Europa. Já tinha praticamente reservada uma excursão de ônibus pelo sul do Brasil com minha mãe, mas não resisti às outras idéias que começaram a entrar em minha cabeça, de modo que mudei de direção.
Era julho, certamente o pior mês para uma aventura daquelas, por causa do impiedoso verão europeu e do afluxo de turistas americanos, mas a desavisada aqui não se deu por achada: o roteiro, marcado pelo improviso (ah, doce ilusão!), começava na Espanha e passava pela França, Itália, Suíça e Alemanha. Coisa de coração de estudante, mesmo: ia procurar cultura e pessoas que a vida me tinha guardado.
Cheguei à Espanha ainda no rescaldo da Copa do Mundo. Os motoristas de táxi, a família dona da pensão onde fiquei, todos só falavam disso, "Ai que pena, Brasil!". E eu a tentar sobreviver ao calor escaldante e o sol que só se punha às dez da noite.
Naquela época, eu ainda não fazia a mais remota idéia de que existia um homem chamado Josep Carreras. A fase lírica ainda não tinha começado.
Curti Madrid e o divino Prado como pude, considerando que tive apenas dois dias, e rumei para Barcelona num trem noturno da RenFe. Viajei cercada por operários da ferrovia, o que aliás adorei porque me senti em casa. Quase tão em casa quanto na Usina da CSN, onde já trabalhava há alguns anos.
Barcelona foi uma adorável profusão de cores, sons e sentidos, a bandeira vermelha e amarela desfraldada em toda parte, e aquela magia que sentia mas só mais tarde viria a entender
. Mas uma coisa me chamou a atenção de imediato: todas as placas de sinalização, todos os anúncios, todas as placas de lojas - tudo, tudo, tudo estava escrito em espanhol e em catalão. Em cada legenda de cada peça de qualquer museu, lá estavam os dois idiomas de mãos bem dadas.
Aquilo me encantou. Gosto de gente que tem orgulho da sua terra, das raízes, daquilo de que é feita. Tive um imediato respeito pela lengua catalana, cheia de sonoridades exuberantes, muitos "x", "ç", acentos à vontade e várias palavras que se escrevem iguaizinhas ao português.
Sem conhecer Carreras, sem sequer adivinhá-lo, sucumbi à paixão por aquela cidade de rosto amplo e aberto, como um abraço. Andei na rua, entrei em lojas, fui ao cinema, visitei o delicioso Museu Picasso, vivi o espanto e o êxtase nos braços de Gaudí e suas arcadas improváveis... mas sobretudo rendi-me incondicionalmente ao espírito catalão. Havia uma força que eu não conseguia precisar, mas que estava em toda parte. Tudo parecia me dizer "aqui é a minha terra, olhe bem."
Anos mais tarde, quando, após retornar de Buenos Aires, escrevi um artigo sobre Josep Carreras no Jornal de España, um periódico voltado para a colônia no Brasil, recebi um telefonema da Sra. Maria Faus, uma catalã maravilhosa que vivia em São Paulo. Fizemos amizade e cheguei a visitá-la, no bairro de Campo Belo. Dirigia, voluntariamente, numa obra social para idosos da colônia espanhola paulista e, claro, era fã do Carreras. Além de me oferecer um livro com poemas de Natal em espanhol e catalão, D. Maria Faus ensinou-me muito sobre a sua gente. Contou-me, por exemplo, que na época do Franquismo era proibido viver a realidade das várias "pátrias" dentro da Espanha: a língua era proibida, os livros, a música, a dança... Disse-me que, na sua juventude, era comum as pessoas se reunirem nas praças para dançar a sardana, um dos ritmos mais contagiantes da terra.
- Todo mundo jogava a bolsa no chão, então ficavam todas aquelas bolsas amontoadas, e a gente ia para a roda dançar. Ficávamos até de madrugada! Era lindo! - emocionava-se.
Com a ditadura aquilo já não era possível, mas mesmo assim todo mundo fazia reuniões clandestinas, nas casas, para dançar a sardana.
- Nunca desistimos, orgulhava-se.
Acho engraçado alguém pensar que, proibindo as pessoas de se expressarem, conseguirá uni-las. Há uns versos da canção Cantoria, de Ivan Lins e Vitor Martins, que dão bem o tom do que é a capacidade de resistir: "Somos a aroeira/madeira dura de se cortar/mesmo depois de morta, ela brota/só pra desafiar!". Pois a bendita resistência dos catalães foi o que salvou a sua cultura e a sua história. Na biografia do inacreditável Lluís Llach, artista que existe neste mundo para nos reconectar com a nossa origem de luta e santa rebeldia, há um trecho que diz que ele foi preso uma vez, após um show, só porque ousou dirigir-se ao público em catalão, na época em que isso era proibido.
Mas voltemos a Josep Carreras, que sintetiza essas forças todas com sua habitual elegância e aquela firmeza discreta, principesca, que lhe é peculiar. Neste blog escrevo sempre o seu nome na forma original catalã, para simbolizar o grande respeito que tenho pela sua cultura. Ouvi-lo cantar em seu idioma é um susto de felicidade, sempre. Já é tradição Carreras contar ao público, antes de cantar a encantadora
El Cant dels Ocells (O canto dos pássaros), que o grande Pablo Casals (em catalão, Pau Casals) sempre encerrava seus concertos no exílio com essa canção tradicional, como um tributo indignado ao sofrimento de seu povo. Dos dois discos de canções catalãs que gravou, tenho grande paixão pelo primeiro. Ouvia-o sempre com a letra na mão, acompanhando as palavras e buscando entender a lógica da pronúncia. Tão bonito, sempre...
No ensaio de Curitiba, ainda distraída numa das pausas, fui tomada por uma emoção enorme quando ouvi a introdução de Rosó, uma das minhas favoritas do disco. Na verdade, chama-se Pel teu amor, e Rosó, ou seja, Rosa, é o nome da musa. Mas no coração ficou mesmo Rosó. Minha garganta insistia em me trair enquanto Carreras passava a música. Sorte que a platéia quase vazia estava escura e os sobressaltos de uma pessoa sentada, ainda que envolta em águas prestes a desatar-se, não podiam ser vistos do palco...

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Capitulo Primeiro - Buenos Aires, julho de 1991

Teatro Colón - Buenos Aires

Deu no Jornal do Brasil, na Coluna do Zózimo: "Josep Carreras estará em Buenos Aires em julho, para dois concertos, etc. e tal. " Ah, bons tempos em que tudo se sabia pelo Jornal do Brasil!
Aquelas duas linhas de notícia pararam o ar respirável em torno de mim. Buenos Aires, dadas as proporções, até que é perto... muito perto, pensei. Senti então a minha velha e incontrolável sede de aventura correr nas veias de novo. E percebi que simplesmente tinha de ir.
Mas como? E o trabalho? E o dinheiro? E isso, e aquilo? Pois fui logo tratando de dar respostas satisfatórias a todos os "E..." que me surgiam na mente: pedi 10 dias de férias antecipados ao meu chefe, com o correspondente pagamento, o que me daria condições de pagar a passagem e os ingressos. Telefonei para os pais de Cláudia, uma grande amiga argentina do tempo do intercâmbio que já tinha estado em minha casa, e garanti a hospedagem.
Até aí tudo bem, mas havia mais um "E...": como conseguir um ingresso antes de chegar lá?
Resolvi telefonar diretamente para o Teatro Colón, numa época em que qualquer ligação internacional era impensável. E foi aí que começou o milagre argentino que me colocou, pela primeira vez, diante de Josep Carreras.
Atendeu-me uma senhora alemã, de nome Jutta Olsson, que presidia a Fundação Teatro Colón e logo simpatizou com meu sobrenome germânico. Por sorte ambas tínhamos limitações quanto ao idioma, e houve compreensão de parte a parte. A Sra. Olsson entendeu muito bem as minhas ansiedades e pronunciou as palavras mágicas:
- Você quer que eu reserve os seus ingressos?
(Ah, meu Deus, era tudo o que eu queria!).
Respondi que sim e perguntei como devia mandar o dinheiro.
- Não se preocupe, você me paga quando chegar.
Difícil acreditar que alguém, por telefone e sem conhecer a outra parte, pudesse agir com tanta consideração. Mas era isso mesmo, eu tinha ouvido direito. Ela ia guardar meus ingressos e eu poderia pagá-la pessoalmente, quando chegasse à cidade.
Tratei então das passagens, do passaporte que estava vencido, enfim, de tudo o que precisava. Surgiu então um novo dilema: com que roupa eu vou? Essa coisa de roupa pode até parecer um detalhe sem importância, mas as pessoas não paravam de me assustar:
- Olha, Buenos Aires não é o Rio, não! Lá é tudo muito formal! Se você não estiver vestida de acordo, não deixam você entrar!
Ai, que medo. Não tinha roupa! Bem, pelo menos não no nível que diziam que eu ia precisar. Procurei então uma grande amiga, Carminha Carrera (por incrível que pareça), que vendia roupas, e expliquei o problema.
Carminha ficou em silêncio, refletindo. E depois me disse:
- Deixa comigo! Já tenho a solução: vou te alugar um vestido de festa! - e mandou-me voltar no dia seguinte, à noitinha.
Na hora marcada, claro, lá estava eu, assaltada por mil dúvidas. E se não servisse? E se eu não gostasse? E se fosse caro demais? (Era a vez dos "E se...").
Minha amiga recebeu-me, foi até o quarto e trouxe, no cabide, uma roupa deslumbrante, em tons de rosa antigo com discretos bordados, com um sapato forrado no mesmo tecido.
Olhamo-nos longamente, num doce silêncio de águas, a generosidade e o entendimento espalhados no ar. Paguei, guardei cuidadosamente a preciosidade e fui em busca del aire de Buenos Aires. E de Carreras, enfim.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Tributo



Sinto falta de Pavarotti, apesar de preferir Carreras.

Sinto falta do jeito bonachão, dos enormes lenços ensopados, do suor a molhar os cabelos, dos gestos fartos à moda muito, muito antiga. Devia ser assim que os tenores faziam quando minha avó, ainda uma meninota analfabeta que fazia faxina numa maison muito fina em São Paulo, apertou boquiaberta a mão de Enrico Caruso, que era amigo da dona do estabelecimento e lá fora provar um fraque. A madame fez questão de perfilar todas as suas funcionárias e lhes oferecer, generosamente, a chance de cumprimentar o grande gênio da ópera.

Sinto falta da delicadeza e beleza da sua voz, apesar de sempre preferir Carreras. E daquela figura avantajada que sempre associei ao Stromboli, o dono do circo que raptou Pinóquio e o prendeu numa gaiola, no inesquecível desenho de Disney.

Pavarotti morreu em setembro passado. Na época estava mergulhada na produção de um festival de cinema, e a notícia escorreu-me pelo dorso sem queimar. E assim fiquei por muito tempo, como se tivesse sido anestesiada com agulhas de acupuntura, até que assisti o vídeo de Paul Potts.

Poderia ser mais uma bobagem do YouTube, onde há loucura para todos os gostos. O concorrente de um dos inúmeros shows de talento que povoam a televisão, sujeito dos mais comuns, cantou um Nessun Dorma tão precioso que todos choraram, júri, platéia, câmeras, o diabo.

Só que, antes de os outros começarem, eu já havia estourado feito uma barragem rompida. Não conseguia parar de chorar, e quanto mais chorava mais tinha a certeza de que não era por Paul Potts, e sim por Pavarotti. A música só fez desaguar a tristeza no meu peito.

Sinto falta do espalhafato de suas roupas, das écharpes coloridíssimas no pescoço, das boinas vermelhas. E do que era grande e do que era singelo. Sinto falta do número três, com "t" de tenores, que a despeito de todas as críticas fez tremerem as listas de vendagem de discos, tão acostumadas a banalidades. Com eles, a lírica rejuvenesceu e criou asas. E voltou direto ao lugar que lhe pertencia de direito.

Sinto falta do carinho dele com Josep Carreras, de sua enormidade artística, das grandes alegrias que a sua voz nos deu nessa vida.

Sinto falta do Core 'ngrato que tenho num cd com a letra completa, apesar de preferir ouvi-lo com Carreras. E da Recondita Armonia que abriu o concerto das Termas de Caracalla. De ouvi-lo falar que o pai cantava melhor que ele, e de uma frase que nunca esqueci, numa entrevista que concedeu em sua casa, em Modena, à jornalista brasileira Marília Gabriela: - Todas as pessoas que têm sucesso na vida precisam ter talento, disciplina e sorte juntos. Se faltar um, não chegam lá.

Sinto falta do recital solo que assisti em São Paulo, num estádio lotado. No intervalo, despontavam tenores de todos os pontos da platéia, numa verdadeira competição de dós de peito. Momentos de glória para tantos anônimos da respeitável colônia italiana da terra da garoa, que exibiam seus dotes no mesmo espaço que o seu grande ídolo...

Ainda lembro de vê-lo sair do camarim do Morumbi num daqueles carrinhos que circulam em estádios, após a apresentação dos Três Tenores em São Paulo, em julho de 2000. Acompanhei-o com o olhar durante algum tempo, numa insuspeitada despedida anônima. Mesmo com ar cansado, aquele homem tinha algo de eterno, não sei explicar direito.

Fica aqui o meu tributo e uma espécie de saudade - apesar de preferir sempre, sempre, Carreras.




domingo, 6 de abril de 2008

Alquimia do olhar

Carreras nos anos 90 - Foto: www.jcarreras.com

Alguém já disse que os olhos são espelhos da alma... bem, eu não poderia afirmar que sempre é assim, mas muitas vezes o olhar das pessoas denuncia, de fato, o que lhes vai por dentro. Há gente que consegue driblar essa porta de transparência que a natureza humana nos oferece e fingir, fingir muito; nesse caso, ou são excelentes atores ou criaturas que desafiam a sua própria humanidade.

No período de imersão em que me dediquei a entender Josep Carreras pela observação e atenção aos detalhes, uma coisa me ficou logo evidente: a profunda transformação no seu olhar.

Não falo de uma mudança gradual, que a idade e os diversos momentos da vida naturalmente trazem. Falo, sim, do espírito do olhar. Bem, são observações muito pessoais e portanto subjetivas. Não há em mim um analista escondido; são impressões de alguém que procura ir um pouco além das aparências.

As fotografias do Josep Carreras jovem e no auge do sucesso, tanto em papéis operísticos como em capas de discos e instantâneos pessoais, mostram um olhar flamejante, desafiador, eu diria até impaciente, por vezes; dá a impressão de uma busca constante, ou de um estado de alerta, como se estivesse permanentemente em guarda.

Já o olhar de Josep Carreras após a situação limite que viveu com tanta coragem e determinação é muitíssimo diferente. Sugere uma paz profunda, um estado de alma acima das pequenas coisas do dia a dia, uma sabedoria intuída, uma visão longínqua que discerne muito bem entre o que é essencial e o que é dispensável.

Nada do que suspeito - faço questão absoluta de repetir - é passível de ser afirmado. São percepções. Os olhares de Josep Carreras - em fotos, filmes, vídeos, nos encontros pessoais, nas apresentações a que tive a chance de assitir - traduzem sua força pessoal, sua classe, sua delicadeza, a sinceridade evidente no cantar, e nos anos recentes uma leveza de alma que, pelo menos a mim, inspira e eleva.

Fico feliz por constatar, a cada vez que o encontro, que esse olhar límpido e verdadeiro, o olhar do encontro consigo mesmo, está cada vez mais presente. E bonito de se ver.

sábado, 5 de abril de 2008

Curitiba: ensaios em dois tempos

Josep Carreras e Enrique Ricci no ensaio de 28/3
Foto: Maurette Brandt



Curitiba, Paraná, 28 de março, 2008.
Na companhia de meu grande amigo, o maestro Enrique Ricci, chego pela primeira vez ao Teatro Positivo, que será inaugurado amanhã, 29, em noite de gala, num concerto que reunirá o tenor Josep Carreras, a soprano chilena Verónica Villaroel e a Orquestra Sinfônica do Paraná, sob a regência de Enrique Ricci.

O teatro impressiona pela monumentalidade. Faz parte de um complexo educacional que reúne a Universidade Positivo e demais empresas do grupo que, nos últimos anos, tem firmado sua marca na área da educação. Segundo a placa em aço escovado afixada no imponente hall de entrada, a arquitetura é inspirada no teatro de Epidaurus, pequena cidade da Grécia Antiga considerada a terra natal de Apolo e seu filho Asklepios, que com seus poderes curadores trouxe prosperidade à região. O imenso teatro ao ar livre, construído por volta do ano 4 A.C., encantava Pausânias por sua simetria e beleza - e, em tempos recentes, voltou a ser usado para apresentações teatrais e grandes eventos.

Acomodo-me na quarta ou quinta fila para ter uma boa visão do palco, na parte que nesse ensaio está destinada aos artistas, pessoal de produção e uns poucos convidados. O maestro Ricci, uma das pessoas mais agradáveis deste mundo, e que consegue conciliar essa característica com um estupendo profissionalismo, conversa com a orquestra, auxiliado pelo spalla, e acerta detalhes mínimos de algumas introduções e trechos mais complexos. Os ensaios gerais tinham começado na quarta-feira, portanto estava tudo praticamente pronto.

Josep Carreras e Verónica Villaroel chegam após o primeiro intervalo. Com a garganta sempre protegida por uma elegante écharpe, como sói, Carreras distribui sorrisos bem-humorados a todos. Sente-se no ar um aconchego, uma tranqüilidade que parece contagiar a equipe. Preocupados, mesmo, só o diretor do teatro e seu grupo de seguranças; afinal, era preciso garantir aos artistas o espaço necessário para trabalharem em paz. Mas isso não foi difícil, em terra de gente educada e respeitosa.

Durante o ajuste do som, Carreras sentou-se em diferentes lugares do teatro enquanto Verónica Villaroel cantava, para verificar a qualidade da propagação do som. Quando ele cantava, era a vez de Verónica subir e avaliar. Nessa parceria e com a ajuda dos técnicos de som, todos os detalhes foram acertados para a grande noite que os esperava, no dia seguinte.

Brincadeiras não faltaram. O sorriso franco, a expressão feliz e o bom humor marcaram a excelente fase artística e pessoal de Josep Carreras. Ao final, participou alegremente das fotos com praticamente toda a orquestra (quem disse que só há fãs do lado da platéia?), cordial e sempre brincalhão. Profissionalíssimos, tenor e soprano só deixaram o recinto após receber a vênia do maestro. Estava pronto o espetáculo.

Curitiba, 2 de abrll, 1993. Acompanho meu amigo Enrique Ricci em uma inspeção noturna à Pedreira Paulo Leminski, palco da primeira apresentação de José Carreras no Brasil, para comemorar os 300 anos da cidade. O maestro queria verificar as últimas providências relativas à sonorização do fantástico espaço aberto onde se daria o hoje emblemático Concerto de Curitiba. Ainda faltava muito; um número enorme de pessoas trabalhava incessantemente na montagem de som e na iluminação. A equipe de som contratada para o evento era a mesma que sonorizou as Termas de Caracala, em 1990, para o histórico primeiro concerto dos Três Tenores; na iluminação e ambientação, a mão de mestre de Rosa Magalhães, que trouxe cores especialíssimas a uma noite memorável.

Enrique Ricci, incansável, paciente e meticuloso com sua arte, passou horas envolvido com os trabalhos. Coube a mim observar atentamente tudo o que acontecia, como o faria qualquer bom jornalista que tivesse uma oportunidade daquelas. O privilegiado espaço da Pedreira Paulo Leminski, cortado pelos fachos de luz orquestrados por Rosa Magalhães e pelos acordes da Orquestra Sinfônica Brasileira, era uma visão magnifica. E isso ainda no corre-corre da véspera, imaginem...

Curitiba, 3 de abril, 1993.O ensaio final ocorreu na manhã do dia do concerto, e para lá segui com uma das assessoras de Miriam Dauelsberg, presidente e fundadora da Dell'Arte, talvez a maior referência deste país em música clássica internacional. Tinha a incumbência de entregar pessoalmente a Josep Carreras uma coleção muito antiga de partituras de Alberto Nepomuceno, a mim confiadas pelo amigo Sérgio Nepomuceno. Graças à produção, pude compor o grupo que acompanhou Carreras em sua visita aos primorosos camarins subterrâneos e a todo o conjunto do palco. E assisti ao ensaio na coxia. A OSB estava visivelmente encantada, não só por acompanhar Josep Carreras como também com a educação e a competência do maestro Enrique Ricci. No primeiro intervalo, Carreras fez-me um sinal para que me aproximasse. Adiantei-me, conversamos brevemente e eu lhe entreguei a delicada encomenda, que o deixou verdadeiramente sensibilizado.

O ensaio prosseguiu num clima alegre, vibrante. O tempo estava enfarruscado e o temor de chuva não estava de todo afastado; mas São Pedro, que também deve ser brasileiro e, mais que isso, fã de ópera, já estava tratando de preparar para Curitiba a mais bela noite de todos os seus então trezentos anos de vida. Noite que tanto o maestro Ricci como Josep Carreras reputariam como uma das mais emocionantes de suas carreiras.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Cantar con el alma


- Ah, mas então você não sabe?

As palavras do meu grande amigo Carvalho, ex-colega da empresa e operístico de carteirinha, ficaram paradas no ar enquanto eu, do outro lado da linha, dizia apenas:

- Não. O que foi que aconteceu?

Era julho de 1990, final de Copa do Mundo. Uma das emissoras de TV aberta anunciava uma apresentação de Luciano Pavarotti, Plácido Domingo e José Carreras, com regência do maestro Zubin Mehta, em comemoração ao final da competição. Seria uma transmissão ao vivo.

Tratei de me programar para não perder aquilo. À menção do nome de Carreras, veio-me à mente a lembrança viva de um jovem lindo e de forte presença, fartos cabelos e pavio curto - que, num acesso de raiva (que até se poderia chamar de engraçado, não fossem as circunstâncias), atirara ao chão suas partituras e saíra batendo várias portas durante as gravações de West Side Story com regência de seu autor, o maestro Leonard Bernstein. O making-of, que se tornou um clássico, fora exibido na TV alguns anos antes. Foi a primeira imagem de Carreras que guardei na lembrança, junto com aquela voz que, como nenhuma outra antes, tornava absolutamente únicas as modulações da grande canção Maria.

A essa altura já ficou claro que nunca fui operística de berço. No aspecto politicamente correto, digamos que a partir de uma certa idade, quando me mudei para o Rio de Janeiro e tive o indizível prazer de mergulhar mais fundo na cultura, comecei a interessar-me pela lírica, com o auxílio de uma coleção de óperas famosas que adquiri em fascículos, na banca de jornal. Eram gravações históricas dos principais trechos das óperas mais conhecidas, com um bom material de apoio incluído.

Meu marco zero, porém - aquele momento definitivo em que a música dilui algo dentro da gente e toma as veias sem piedade - foi o filme La Luna, produção americana estrelada por Jill Clayburgh. A protagonista é uma diva que cultiva uma estranha relação com seu filho adolescente. Hoje, se me perguntarem sobre o enredo, isso é o máximo que consigo lembrar, porque durante o filme todas as minhas atenções se voltaram para a música. Foi um arrebatamento, um deslumbramento, algo que não consegui controlar em momento algum. Quando o filme acabou, eu tinha de ver de quem era aquela voz. Fiquei plantada na cadeira esperando os créditos - e, quando estes finalmente apareceram, soube que todas as gravações utilizadas para dublar a atriz eram de Maria Callas. Estava explicado.

No dia do concerto, sentei-me à frente da televisão muito concentrada. Toda a minha bagagem era a imagem de Josep Carreras que tinha daquele momento Bernstein do passado. Veio Zubin Mehta com o intermezzo inicial, veio Pavarotti - e veio Carreras com a ária La solita storia, de L'Arlesienne. Só que era um outro homem. Minha respiração parou ao ver a imagem de alguém que parecia mais velho, mais magro, embora lindo ainda. E com a mesma voz que me prendera da primeira vez. Na minha santa ignorância, fiquei a imaginar como se havia dado tal transformação. Mas o espetáculo - e que espetáculo! - tomou-me de tal forma, a música foi tão mais forte, que a surpresa da visão de Carreras ficou momentaneamente esquecida.

No dia seguinte, lembrei-me do Carvalho e telefonei para perguntar. Foi então que soube da leucemia, da recuperação e do retorno aos palcos. E aí começou minha jornada para encontrar a essência daquele ser humano que tinha sido agraciado com tanto.

Uma das coisas que logo soube, em minhas pesquisas, foi da existência de um livro chamado Cantar con el alma, em que Josep Carreras relatava o episódio da doença e as coisas por que passara. Tenho que ler isto, foi o meu primeiro pensamento. Mas como? Edição brasileira, nem em sonho. Descobri que só tinha sido publicado na Espanha e nos Estados Unidos. É claro que preferia ler em espanhol, sentir suas próprias palavras, a estrutura de pensamento em sua própria língua. Saí perguntando para todo canto como é que podia conseguir a preciosidade. Algumas livrarias poderiam importá-lo, mas sairia caro demais para mim naquele momento.

Por fim a minha irmã Lenita, que era amiga de uma aeromoça casada com um piloto da aviação civil, conseguiu que esse senhor comprasse o livro na Espanha e o trouxesse para mim. Recordo-me até hoje de minha ida até o escritório dele, na Rua da Assembléia, no Rio de Janeiro, numa tarde chuvosa e cinzenta. Levava os dólares contados para pagar a compra e subi muitos andares, no edifício onde fica a Faculdade Cândido Mendes.

O santo homem que me fez esse enorme favor entregou-me, então, uma sacola plástica da loja El Corte Inglés, que tremia com a alma de Carreras dentro. Eu não sabia o que fazer, se abria, se folheava, se lia nem que fosse um pedaço... Acabei decidindo ir logo para casa, onde teria mais prazer em percorrer as páginas guardando o mais profundo silêncio, como exigia um momento solene como aquele.

A leitura de Cantar con el alma foi muito importante para mim. Pude escutar suas palavras, acompanhar suas emoções, ter uma visão maior dos momentos mais difíceis e das grandes alegrias que experimentou, após a cura da doença. Enfim, como se diz no jornalismo, pude ouvir a versão do próprio. E passei a admirá-lo mais ainda depois disso.

Até hoje esse livro aparentemente simples, mas de uma força avassaladora, tem um lugar especial na minha casa. Nem sempre o visito, mas sei que está lá, e ainda treme quando porventura o toco. Fiz questão de guardar também a sacolinha do El Corte Inglés que o transportou até mim, dobradinha num canto. Só para não esquecer o que não se pode mesmo esquecer.

quinta-feira, 3 de abril de 2008

A segunda vida


Impossível falar de Josep Carreras sem falar na leucemia. E digo isto com orgulho, porque a sua luta - felizmente vitoriosa - contra a doença acabou sendo o passaporte para o que chamo de sua "segunda vida". Pela qual, aliás, tenho grande fascínio: o homem que tinha o mundo a seus pés doou-se à humanidade de uma maneira tão absoluta e verdadeira que impressiona pela firmeza e pela consistência. E tudo isso sem deixar de realizar plenamente a sua arte - que, aliás, tem colocado inúmeras vezes a serviço da causa.

Não é preciso entrar em detalhes, mas vale resumir: a leucemia, diagnosticada em 1987 após uma pequena cirurgia dentária, tirou Josep Carreras da cena lírica por quase um ano. Com uma fé inabalável na Medicina e na sua própria força, Carreras empreendeu corajosamente o tratamento, primeiro em Barcelona e depois em Seattle, EUA, no Fred Hutchinston Research Institute, aos cuidados do Prêmio Nobel Dr. Donald Thomas.

Após submeter-se a um auto-transplante de medula óssea - com a retirada e reimplantação da sua própria medula, após ser purificada para eliminar as células comprometidas - Josep Carreras enfrentou a quimioterapia. E venceu a parada. Sua fé em que voltaria a cantar era tanta que jamais permitiu que o entubassem, pois isso poderia causar danos às cordas vocais.

Logo que começou a restabelecer-se, Carreras sentiu que precisava fazer algo para lutar pela cura da leucemia. Alicerçada na mais firme convicção de que a pesquisa científica seria o melhor caminho, nasceu então em 1988, em Barcelona, a Fundação Internacional Josep Carreras para a Luta contra a Leucemia. O lançamento se deu num concerto memorável ao ar livre, onde apenas um seleto grupo de doadores e parceiros pagou por lugares especiais: o público assistiu de graça.

Hoje com 20 anos, a Fundação é uma organização importantíssima na luta contra a leucemia em todo o mundo. É responsável não só por uma respeitável atividade de pesquisa e treinamento, como também criou e controla o REDMO, um banco para registro e busca de doadores de medula óssea, de âmbito mundial, que tem ajudado a salvar muitas vidas.

Há alguns anos, numa entrevista em São Paulo, Josep Carreras disse que a doença não muda a natureza humana, e que após algum tempo a pessoa acaba voltando a ser o que é, com seus defeitos e qualidades. Só que ele nunca se esqueceu, por um minuto sequer, do compromisso que assumiu nessa sua riquíssima segunda vida: lutar incessantemente contra a leucemia, seja emprestando sua imagem e prestígio pessoais a campanhas, seja realizando concertos beneficentes, seja visitando e apoiando instituições em todo o mundo - como fez aqui no Brasil por várias vezes, no Rio de Janeiro, em Curitiba e em Manaus.

A segunda vida de Josep Carreras, coroada de sucesso nos palcos e na beneficência, tem sido não só uma bênção como um exemplo que tem carreado muitos adeptos, em diferentes momentos, que por causa dele passaram a olhar a humanidade com melhores olhos - e a envolver-se na luta contra a leucemia e outros tipos de câncer.

Este blog há de falar, em futuros posts, sobre algumas dessas pessoas e sobre os frutos do exemplo do ser humano Josep Carreras.

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Ser fã

Concerto dos Três Tenores
São Paulo, Morumbi, julho de 2000 - Foto: arquivo pessoal


A palavra costuma vir acompanhada de uma expressão algo pejorativa, um certo tom minimizante, como se fosse feio, indigno ou mesmo uma infantilidade admirar um artista ou uma personalidade qualquer.

Discordo disso, sempre discordei. Na qualidade de fã e também do ponto de vista sociológico. É certo que há tantos tipos de fã quanto há tipos de gente; por isso mesmo, não vale generalizar. Mas é preciso convir que o fã é um fenômeno importante na sociedade.
O que seria dos artistas sem os fãs? Sem a energia fiel e constante daqueles que os admiram? Há uma simbiose complexa nisso: subir ao palco, oferecer o melhor a quem deseja sorver esse melhor. Do outro lado, enfrentar fila, sair horas antes de casa - muitas vezes de ônibus - só para ter a alegria de estar presente no mesmo recinto, receber a oferta daquele melhor no qual o artista se esmerou e guardá-la no coração. E talvez mais tarde esperar pacientemente à saída, agüentando o mau humor congênito que parece acometer os seguranças e os secretários de muitos artistas, só para buscar um sorriso, um autógrafo, uma foto quase eterna.

Decerto que há gente louca, que não conhece limites; gente obsessiva, gente que suga, que quer consumir o objeto amado na esperança de transformar-se nele, de sorver o seu talento sem saber ao certo o que faria se o conseguisse. Desse tipo de fã eu fujo sempre. E é fácil identificar essas pessoas trocando meia dúzia de palavras, ou observando a expressão em seus rostos. Em muitos casos, porém, os fãs são pessoas ternas e dadivosas, prontas a cuidar e proteger. Pessoas do bem, que só querem o bem de seus artistas.

Desde quando o Josep Carreras começou a mexer com a minha alma, tive vontade de conhecê-lo. Penso que, em princípio, existe uma instância em que os seres humanos são iguais; podem olhar-se nos olhos, falar de coisas simples, ter tempo para enxergar-se. Na verdade nunca me dei muito ao trabalho de me perguntar por que razão o Carreras iria querer enxergar-me, mas sempre achei isso perfeitamente possível. Eu sabia o que tinha dentro para oferecer, e era bom; e sempre estive certa de que ele, de algum modo, receberia.

Mas reconhecia que as chances eram remotas: a Europa longe e cara, a vida muitas vezes difícil... Tratei pois de conhecê-lo pela música, aprofundando-me o máximo que podia. Conversava com amigos, lia, ouvia, ia buscar a informação onde estivesse. Pouco a pouco fui travando contato com pessoas que, com sua generosidade, contribuíram para situar-me no tempo e no espaço com relação à sua obra. Eu sempre tinha um pensamento bom para ele, fruto daquela intimidade fictícia que o costume instala entre público e artista. Não é maldade, é apenas natural: fala-se "o Carreras" como se todas as semanas tomássemos café juntos na mesa da cozinha (para mim, freqüentar a cozinha da casa de alguém é algo perto do máximo de intimidade). Como se o objeto da nossa admiração fosse uma espécie de parente e não estivesse, afinal, a tantas milhas de distância em inúmeros sentidos.

Mal eu sabia que o dia do primeiro encontro não estava, afinal, tão longe assim.

Mas isso já é tema para um outro capítulo.

Preferências afetivas

Josep Carreras como Andrea Chénier - Foto: www.jcarreras.com

Do repertório de Josep Carreras, tenho alguns "afetos musicais" de primeira hora. São justamente as lembranças dos primeiros discos que comprei.

Nos idos de 90 tudo era mais difícil; para conseguir um aparelho de cd foi preciso um esforço imenso! Acabei dando sorte porque um amigo me trouxe um portátil Sony do Paraguai (e original, por mais incrível que isso possa parecer).

Em setembro de 1990 fui para São Paulo visitar a Bienal do Livro. Aqui no Brasil tem Bienal todo ano - isto porque ambas as Bienais, do Rio e de São Paulo, acontecem em anos alternados. Aproveitei a ocasião para procurar um LP do Carreras. Claro que isso foi antes de eu possuir o meu modesto cd-player. Saí a fuçar nas mais antigas lojas do centro da cidade e deparei-me - pasmem! - com o mesmíssimo disco de canções que havia escutado na casa do meu primeiro mentor operístico, o engenheiro Linhares. Comprei no ato e trouxe-o na viagem de volta com mil e um cuidados. Meu primeiro Carreras! Ainda o tenho perfeito; devo informar que o vinil não furou e ainda me dá alegrias quando, ocasionalmente, tenho o prazer de revisitá-lo. Sim, possuo um toca-discos admirável, todo restaurado, que me torna possíveis tais prazeres.

Pouco tempo depois, já incorporada à era do cd, encontrei no Rio de Janeiro a Misa Criolla. Até hoje tenho ímpetos de fazer um minuto de silêncio quando penso nessa maravilhosa obra, que me emocionou profundamente desde as primeiras audições. E perdura a forte impressão de que jamais a voz de Josep Carreras soou tão cristalina e bela em qualquer outra gravação. Com certeza devia haver anjos e mais anjos na platéia, talvez invejosos da beleza de tudo aquilo. E com a Misa Criolla veio também a devoção pela obra de Ariel Ramirez, que até então conhecia apenas pela canção "Alfonsina y el Mar".

Minha terceira aquisição - uma verdadeira loucura, pois naquela época os cds importados eram caríssimos - foi a ópera Andrea Chénier completa, com Carreras ao lado de Eva Marton. É engraçado imaginar uma pessoa com fones de ouvido pela rua - cena aliás comum hoje em dia - ouvindo compulsivamente uma ópera completa, e nesse caso particularmente difícil e pesada. Pois eu fazia isso em todos os lugares, para desespero da minha mãe, que imagino tenha pensando em internar-me...

Amo Andrea Chénier por várias razões. E uma delas foi recordar a minha "febre" de Revolução Francesa. Sim, também a tive! Quando estava pelos onze anos de idade, interessei-me por escrever um produto típico da nossa cultura: uma novela - e ainda por cima de época. E qual foi o tema que escolhi? A vida de Maria Antonieta...

Lembro que meu pai sorriu diante das minhas pretensões e fez a melhor ponderação possível, dadas as circunstâncias:

- O que é que você sabe sobre a Revolução Francesa?

- Nada... - foi a acanhada resposta.

- Pois então vá ler - recomendou.

Bem, fui ler. Na tímida porém bem montada biblioteca pública de Barra Mansa, minha cidade natal, comecei o que seria uma longa imersão nas Memórias de um Médico, o relato em 21 volumes que Alexandre Dumas, pai, fez da Revolução. A obra se inicia no período de Luís XIV, atravessa o Terror e chega à consolidação das conquistas democráticas.

Não foi uma leitura fácil, embora me fascinasse imediatamente. Concluí o trabalho em três períodos; uma parte dos 11 aos 14 anos, outra dos 18 aos 20 mais ou menos e o restante após os 25 anos. A intenção da novela ficou pelo caminho, mas o tema instalou-se dentro de mim. E quando a paixão pela voz de Carreras me trouxe Andrea Chénier, foi na verdade um belo reencontro. Afinal, eu já tinha vivido alguns dos principais momentos da ópera, nas páginas de Dumas!... Mas devo dizer que a história da França me pareceu muito mais bonita quando a ouvi cantada por Josep Carreras, Eva Marton e Giorgio Zancanaro.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Ah! Mi tradia!...


Sentadinha na sala de espera da casa do engenheiro Linhares, a primeira pessoa a quem procurei quando resolvi tentar comunicar-me com a música de Josep Carreras, não escapava ao escrutínio de D. Angela, sua esposa, professora de canto e muito altiva. Mas eu não me importava. Linhares, especialista em acústica e aposentado já há alguns anos, era um aficionado da ópera e, dizia-se, possuía muitos discos. E quando digo discos, quero dizer os famosos long-plays em vinil, com doze faixas e o som mais doce que há, mesmo em plena era dos cds e do mp3.

Ele quis saber o que tanto eu queria com o Carreras, afinal. Complicado explicar o que é pura emoção, simplesmente, um gostar e sensibilizar-se do tamanho do mundo e sem lógica alguma. É claro que, com o tempo, fui aprendendo o respaldo "técnico" para os sentimentos que me povoavam na época, mas naquele momento eu só queria mesmo ouvir, ouvir, ouvir.

E foi então que, na sala de visitas do número 100 da rua 103 (em Volta Redonda, cidade industrial por excelência, as ruas eram numeradas), a minha alma recebeu, pela primeira vez, a ária Quando le sere al placido, da ópera Luisa Miller, de Giuseppe Verdi.

O disco continha outras coisas, como as sete canções espanholas de Manuel de Falla, por exemplo. Na capa, uma foto de meio corpo de Carreras; na contracapa, um rosto enorme, intrépido, cabelos fartos e um penetrante olhar de quem tinha à sua frente o mundo.
Pregada à cadeira, eu parecia um vaso cheio de água quase até à borda. As palavras elegantemente pronunciadas, a sonoridade redonda e densa, a beleza da peça, tudo me tomava, e eu tratava de me cuidar para não transbordar (e por onde seria? pelos olhos, é óbvio, já que eu sempre fui um desastre para conter minhas próprias marés).

I questa mano stringermi
dalla sua man sentia
Aaaah! Ah! Mi tradia! Ah! Mi tradia!

As águas tremiam dentro, eu a equilibrar-me fracamente nas paredes do corpo. A bem-comportada sala que parecia girar, e aquela voz a levar-me cada vez mais depressa. Meu Deus, não sei como me mantive na mesma posição, sem desabar no escoadouro, até o final da música e das minuciosas explicações do engenheiro operístico sobre a vida de Carreras.

Saí dali bem mais tarde, muito grata ao amigo pelo tempo e paciência que me dedicou. Generosas doses de Carreras, uma Lakmé com Sutherland, café e biscoitos, D. Angela e suas perguntas mil. Mas havia Luísa Miller, e eu sentia que, contrariando o libreto, Carreras e a ópera não me haveriam de trair.